quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Vindimas e o vinho no meu tempo por Ansião

Agendado o dia na contratação por palavra ,ao "pessoal de fora" com jorna de comer, podia ser a seco, ao tempo não faltava a Gracinda Borracheira  e a irmã Maria , homens de Albarrol; Pedro e outros , que logo de manhã se apresentavam à porta para o mata-bicho; cachaça, por último só queriam brandy Pedro Domec. O almoço era levado à hora em cabazes de verga, geralmente rancho à moda de Viseu, todos comiam que se fartavam e não faltava arroz doce.
O meu pai tinha plantado umas parreiras de casta especial, tipo D. Maria, de cachos e bagos grandes punham-se numa cesta à parte para se pendurar e comer pelo Natal. 
Na cave da casa -,a loja, servia de adega e arrumos, havia uma ligação por dentro em escadaria de madeira estreita que fazia a ligação a esta e ao sótão.
Num bom ano a produção de uvas enchia o grande tanque.
Alto, o meu pai a rondar o soalho da casa ao bailar na pisa das uvas na medonha amálgama de cachos. Impacientes no rebordo do tanque, eu e a minha irmã, também queríamos pisar as uvas. 
Farto de nos ouvir dava-nos autorização com recomendações, primeiro ritual a lavagem de pés, despir as saias e em cuecas lá nos aventurávamos a subir a escadita com degraus de paus para entrar no grande tanque. 
Qual cacho ou engaço sempre a teimar roçar as nossas pernitas quase até ao umbigo!
O cheiro sufocante, forte, não devia ser inalado, não fosse a aragem dada pelo grande portão aberto de par em par,os gases perigosos provocam intoxicação,por isso de cabeça no ar a cantar, nada de cabeça baixa.O nosso pai metia-nos medo,"já tem morrido pessoas"...na altura não acreditávamos!
Aquilo era uma fartote de rir, cantar e dançar em pisa bem acalcada, se era!
Faina acabada, de volta sentadas no rebordo do tanque a ver as nossas pernas a escorrerem, pintadas ficavam de carmesim com mui baginhos colados à pele. Novo ritual de lavagem, só que agora as unhas ficavam pintadas, para não dizer encardidas!
Fim da azáfama da pisa, o tanque era coberto com uma manta de serapilheira, por baixo dela uns varejões em cruz faziam o estandarte. Durante dias aquele cheiro forte invadia a casa toda.
No dia seguinte e até ao dia de envasilhar de manhã e à tarde, não podia faltar o ritual de se acalcar o mosto com uma espécie de taco largo em madeira, espectáculo lindo aquele de fazer baixar o engaço, espumava forte, parecia um bolo a crescer. 
Tempo de preparação do vasilhame,os pipos em madeira eram demolhados durante dias, os aros martelados, as cubas de cimento lavadas, os postigos ensebados com banha de porco comprada a granel no talho,adorava bate-la com o martelo no chão de cimento até amaciar para se moldar e postigar. Haviam três pipos muito grandes, eu e a minha irmã entrávamos dentro deles para os lavar e parafinar. 
Por entre os barrotes do soalho era hora de tirar os vimes lá entalados, com eles e a faca da "horta" faziam-se espichos afiados, e da tira de cortiça moldava-se alguma rolha à última da hora.
No dia de envasilhar o vinho era emulsionante o abrir da torneira do tanque. Mosto encorpado num virote se enchiam canecos e com eles os meio almudes que em fila eram logo despejados no grande funil para dentro dos pipos- o mosto emanava um som  ensurdecedor a cair no vazio do pipo .
Os pipos ficavam cheios sem entornar para não chamar os mosquitos e ficavam tapados com marmelos ou maças durante toda a fervura, e eram de vez em quando atestados, por fim rolhados quando o vinho deixava de ferver.
Anos havia que se fazia uma pinguita de vinho branco na dorna, esse era feito de bica aberta e metido na cuba pequena.
Meio almude roto reaproveitado como floreira 
Vinho envasilhado eram horas de meter o engaço em bacias e na pressa de o acarretar à cabeça até à prensa do Ti Parolo, para depois de bem espremido à força de braços trazer na volta o néctar da água pé em meio almudes que se despejavam na cuba maior.
Da prensa o engaço exprimido era levado em sacos na burra Girica da minha Ti Maria, até ao alambique do Moinho das Moitas, para se fazer a aguardente, onde fui algumas vezes.Ficava nas traseiras do moinho, no caso diria azenha nos Olhos d'Água, recordo os cilindros em inox altos, fogueiras, carreirinhos de tubinhos entrelaçados a verter um líquido branco de cheiro intenso mui forte, a "branquinha", tantos nomes, para mim- cachaça nova.Outros havia que aguardavam a sua vez e levavam farnel aviado; batatas pequeninas que enfiavam na hora em arame fino e o vergavam em arco, logo metido no brasido a assarem, acompanhavam com postas de bacalhau que também era assado no brasido ou chouriça ou morcela com cominhos. 
Havia um leque de cheiros no ar, mas o da cachaça nova entontecia a minha cabeça jovem. 
De volta a casa trazíamos um garrafão azado de 25 litros.
Ir à adega buscar vinho era tarefa diária.
Um dia vaidosa com o troliteiro, herança da minha avó Maria da Luz , fui pelo lado da rua, ao poisa-la no chão para abrir o portão, dei-lhe um encontrão e num ápice a linda jarra de bico repenicado partiu-se .Era uma bela jarra em vidro com pezinhos, quiçá a imitar uma peça de arte ali desfeita aos meus olhos. Ainda hoje me magoa lembrar o facto, mais tarde consegui encontrar na feira- da- ladra um parecido mais pequeno, só para nunca me esquecer daquele que fora da minha rica avó.Sorte a minha, mais tarde encontrei um bocadinho com um pezinho no quintal, na altura não havia recolha de lixo, guardo-o, estimado, na minha cristaleira de recordações. 
Pelo S. Martinho era hábito abrir-se a água-pé, enchíamos infusas de barro vidrado das Caldas, melhor saboreá-la em malgas pequenas de Sacavém ou Lufapo de Coimbra, senti-la gemer no vidrado, a pinga era encorpada! 
Já o vinho novo provava-se pelo Carnaval, dependendo do frio do Inverno, quanto mais frio mais depressa ele cozia. Anos havia que se enchia de "flor" a fazer lembrar os agriões na eira dos Olhos d'Água e da Lameira, onde tantas vezes nas tardes tórridas de Agosto eu e a minha irmã tomávamos banho na Ribeira escondidas por entre os milheirais.
Havia o hábito de tirar o vinho novo com a ajuda de uma pequena mangueira que se punha no buraco no topo do pipo, de tão grandes tinha de subir ao estrado de madeira para lá chegar. Bons pulmões para puxar o vinho pela mangueira e fazê-lo "pegar" começar a jorrar e encher a infusa.
Nunca nos podíamos esquecer de tapar o pipo com a rolha de cortiça, lavar a mangueira e o funil e arrumar tudo no sítio. 
Mais tarde o nosso pai abria o "espicho" de cima -, pequenos orifícios ao longo da frente do pipo fechados com palitos grossos de vime aguçados, quando o pipo ia mais de meio, finalmente lhe punha a torneira.
Quando vínhamos da escola, havia anos que tínhamos fregueses à nossa espera para comprar garrafões de vinho. As torneiras eram grandes, enchiam-se depressa. 
Não me recordo de em miúda alguma vez me ter "enfrascado".
No cinquentenário do meu tio António Paz no jantar em sua casa a mesa engalanada com o serviço de loiça da vista alegre, foi servido um arroz de marisco num grande tacho de barro, a esrear.Primeira vez que bebi por uma tacinha o champanhe, as bolinhas, essas marotas, fizeram-me cócegas na garganta, ao sair ao rebate da porta, os degraus em meia lua, qual altar, lindíssimos ,então a dar o braço à minha mãe não baloicei...
Avisos dos malefícios do vinho...sempre comedidas no beber -, tais os reparos constantes da nossa mãe em casa todos os dias às refeições em nos relembrar para não abusarmos do copito de vinho - "meninas não bebam mais"… 
Assistíamos ao exemplo do nosso pai -, dava-lhe para disparates e atitudes absurdas sem explicação. Infelizmente também para ele viveu uma infância num ambiente nada saudável ao assistir a cenas de embriaguez da sua mãe-, minha avó Piedade, no propósito do seu único consolo abafar desgostos -, obrigada que foi a casar com o meu avó, homem trabalhador mas rude, conta-se que fugiu dele na sua noite de núpcias...viveu uma vida amargurada, infeliz, não soube o que era o amor. De todas as irmãs a mais bonita, muito alta, abençoada de pele alva e macia ornada com longos cabelos pretos brilhantes, prendada de mãos, e delicada nos lindos bordados que fazia à máquina. De olhos num homem de justiça que apareceu na terra - dizem se encantaram um pelo outro - mas o seu pai Elias não permitiu o namoro, tinha casamento destinado com o pedreiro “Zé do Bairro” que veio a ser o meu avô. Infelizmente assisti a cenas tristes por tantos desgostos abafados no vinho. 
Dia houve que o meu pai me mandou ir a casa dela buscar azeite, ao chegar e dizer ao que ia, a avó atirou-se a mim, deu-me uma valente sova - "sem quê nem para quê" como se eu tivesse culpa de alguma coisa… 
Outra vez vinha eu de Coimbra com a minha mãe ao passar na sua casa, ofereceu-me sopa - mal maior - não havia pratos, casa sempre com gente de fora, tudo mal acautelado, à mão de semear ,em ambiente fértil a desvios…logo de sentido prático a minha mãe tira do saco um prato vazado, de rebordo esburacado em louça decorativa de Coimbra, comprado nesse dia. Triste imagem ao ver a canja fugir pelos buraquinhos do prato ... 
Esquinado dia sim, dia não, o meu pai perdia o controlo e a razão - um demónio vivo que assustava tudo e todos, os nossos dias eram vividos sempre com “o coração nas mãos". Imprevisível. Dia que se aventurava aos tiros às galinhas das vizinhas que andavam no nosso quintal, acaso acertasse em alguma, coitada da minha mãe ia a correr pagar o prejuízo… 
Também dos cães que acolhia sabe Deus por onde, achadiços sem dono - mentor da proteção animal com foros de dono de canil, dava-lhes guarida no nosso quintal – por outro lado a minha mãe a dar-lhes descaminho como podia… 
Bons os domingos, havia sempre um bolo, pela fartura de nozes partidas a martelo. De roda das saias de minha mãe a folhear o livro Pantagruel, ajudava a bater a massa com colher de pau, se porventura o bolo crescia pouco, a culpa era sempre minha, não tinha mexido sempre para o mesmo lado. Hábito também de fazer um tabuleiro de palitos para toda a semana. Enquanto coziam no forno elétrico, hora de me sentar no rebate de calcário oolítico a lamber os fluidos de massa doce que escorriam do pequeno alguidar vidrado de cor verde! 

Aprecio um bom vinho, palheto, encorpado que não se sinta a escorregar, habituada a beber às refeições desde que me lembre, não propriamente de beber as chamadas - "sopas de cavalo cansado" - de saborear um golo de bom vinho ao mesmo tempo que comia a “sopa de entulho, sopa da pedra ou comida à moda da terra”…sentir esse delírio - coisa de uma ou duas vezes... 
Aconteceu numa festa de batizado em Ílhavo, a minha irmã madrinha do rapaz, a mãe colega de trabalho da Lousã, o pai, homem mais velho andou emigrado, passava o tempo na pesca lúdica. Mesas fartas, fresca mariscada, no forno de lenha tachos de barro preto assavam chanfana, no fogão coziam couves asa de cântaro para acompanhar - bar feito pelo anfitrião em tábuas de pinho queimadas para dar um aspeto pitoresco repletas de garrafas de licores caseiros em garrafas de todas as cores, ainda a arca cheia de cerveja. Tanta mistura - tal a insistência “esta é para a irmã da comadre” - sempre para “a irmã da comadre, para a comadre, e ainda para a mãe da comadre” -só me levantei da mesa pela noitinha para vir embora, difícil foi segurar as pernas direitas, tal igual ou pior a minha irmã, sentadas as duas no banco de trás do carro conduzido pela nossa mãe numa estrada de pinhal com buracos de meia-noite, vivemos momentos de aflição pela grande indisposição…premente paragem no meio da mata florestal para… grande a escuridão. Maior alívio o que sentimos depois de descarregar o estômago…em cantoria viemos até a casa…” todo o caminho no arremedar o compadre - esta é para a irmã da comadre…outra para a mãe da comadre e mais uma, para a comadre”… 

Tabernas de cheiro a vinho e, carraspanas…fartura de pipos de madeira de todos os tamanhos e copos brancos, grandes e pequenos, os famosos copos de três…pias em pedra de loiz onde eram esfregados com as mãos à laia de lavados na torneira de latão, mosqueiro com paredes de vidro e dentro dele petiscos: sardinhas ou carapaus com molho de escabeche, iscas, filetes de bacalhau com ovo, atum, peixinhos da horta e, …ainda me lembro de copos grossos em casca de cebola, dos copitos para a aguardente, dos altos para os finos, dos pires para os tremoços e amendoins, do cheiro a vinho a escorrer no balcão - dos homens dentro e fora de portas de copos na mão, bêbados a cambalear, a dizer disparates e a cantarolar. Obrigação sentia quando a minha mãe me mandava chamar o meu pai e o trazer para casa. Dia houve ao entrar pelo portão da taberna da Helena na Praça - envergava calças, casaco em malha comprido de atar à cintura e socas com sola em cortiça, cachopa esbelta a despontar para a adolescência -a D.Helena por estar em cima do estrado do balcão fitou-me o olhar, vira-se para o meu pai e diz-lhe “ oh Valente a tua filha tornou-se numa mulher, vai-te embora, a taberna não é bom lugar para meninas como ela”. 

Recordações de algumas tabernas de então: António Antunes no Moinho das Moitas; “João Anão” Além da Ponte; na vila tio Ruivo, tia” Carma do Russo”; Zé Piloto; Adrianito Rodrigues; “Gracinda dos cachopos”; Manuel Mouco; Carlos Antunes, Ti Domingos, tia Dorinha, Ti “Albertina do Girardo”; “Tarouca”; no Ribeiro da Vide: Zé André, Ti Nicolau, Ti Moreira no Bairro e,… 

Inesquecível um episódio de brutalidade - após um dia de trabalho a minha mãe passou na taberna da tia Carma para chamar o meu pai, para com ela irem para casa -, mal chegada, os amigos que com ele bebiam como sinal de respeito, pousaram os copos no balcão, instante imediato olhou para eles e questionou-os “não bebem é por causa dela?” - ato imediato jogou o copo de tinto sobre o belo casaco branco, nem pestanejou com o estrago total.
Bebedeiras, esquinadelas ou carraspanas deram azo a tantos disparates, após passarem - ,questionado nem acreditava, até ficava triste…
Saber controlar vícios é fundamental!

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