quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Os primeiros anos vividos com a minha irmã em Ansião

Foto Jaime Paz
Atropelam-se na minha mente histórias em fúria  que se "pelam em fila" para ser eleitas na sorte apenas de algumas as eleitas!
Por trás de saias rodadas e do conceito de família com recursos, pais funcionários públicos, e do hábito de ir à missa de meias brancas até ao joelho, salvo em janeiro “sinal de pouco dinheiro” também de usar: golas de plástico às pintinhas; chapéu de palhinha sedosa creme; saias pregueadas; suspensórios; sapatos de fivela pretos de verniz; beber café de cevada; chá de limão e mel para curar a gripe; comer laranja às rodelas regada com água quente coberta de açúcar amarelo; ainda todos os anos ver o canteiro de capuchinhas laranja a invadir o patim "o mau vinho do meu pai tinha momentos de extravasar em maus-tratos, violência, falta de respeito, medos e supérflua vaidade". Coibido da droga alcólatra - um amigo generoso, exigente, corajoso, criativo e humano -, atributos que lhe herdei, tal e qual a minha irmã!
Da nossa mãe herdámos a liderança, o conceito de família e ambição de ter alguma segurança. 
Forçada a crescer sitiada de criadas internas -, a primeira, novíssima, quase da minha idade, outras mais velhas, pelo meio cuidados da avó Maria da Luz e das mulheres que trabalhavam por conta da avó Piedade, na padaria e nas fazendas, também da tia do meu pai Maria e das suas filhas: São; Tina e Júlia que viviam no gaveto dos quintais numa casa de sobrado de paredes meias com a casa baixinha dos bisavôs de lume terreiro com testo descomunal da chaminé apoiado no pilar de madeira negro do fumo e da idade -, pelo chão banquitos dispersos ao alheio. 
As minhas amas…Bem-haja à Ti Angelina de Albarrol mulher robusta de belos olhos azuis, uma das muitas mulheres-a-dias da avó Piedade, ajudava na lide da padaria, vendia o pão de cesta à cabeça por caminhos e atalhos, ainda me levava ao Correio velho para a minha mãe me dar de mamar. Havia outras: Ermelinda, e a irmã Florinda da Garriasa eram amassadeiras; a Ti "Isaura Reala" durante anos lavadeira de roupa alva da avó, e da minha casa a lavava no ribeiro ao fundo do seu quintal; a Lucinda do Pessegueiro; as filhas do António Mendes o " Pau-preto"  que trabalhavam nas fazendas; Albertina, Silvina e Fernanda, os filhos mais velhos desta...Carlos e o Ilídio ...Rufias iam todos os dias a caminho da minha casa para me passearem no meu carrinho de bebé, usavam o corredor comprido e o terraço da frontaria da casa e depois de cansados de tanto o guiarem e baterem contra o estuque marmoreado, quedos aos reparos da criada logo me largavam, em fuga de passo corrido só paravam na guarita do guiché do Correio a dizer à minha mãe "senhora já passeamos o carrinho da menina" de mão estendida esperavam ansiosos pelos tostões…Menos sorte as temporadas da avó Maria da Luz na minha casa. Amiga de conversa fiada com as vizinhas durante o dia, à noite rasgava trapos até amolecer de sono com que fazia grandes novelos -, só pensava em mantas de tear para os enxovais das netas, cheguei mais tarde a ir com ela aos Matos a casa da tecedeira Rosalina encomendar uma colcha e duas mantas. Outra das suas tarefas que puxava a si - supervisionar as criadas, não fossem desviar alguma coisa ,fazia-lhes a "vida negra" indiciava a minha mãe "oh Dina olha que elas até escondem o que roubam nas cuecas"…
A minha avó gostava de obsequiar quem precisava, dava volta a tudo como se fosse a dona da casa, nem pedia licença, uns cobertores queimados pelos cigarros -, o meu pai adormecia com eles nas mãos os deu à "Alice do Pego" para deles fazer pequenos e aconchegar os filhos -, agradecida de tal gesto num tempo que viveu com dificuldades, ainda hoje fala com carinho e bondade  da minha avó Luz.
A minha avó tomar conta de mim? A idade não lhe conferia feição para ama -, deixava-me sozinha na camita, enroscava-me o biberão, e à sorte de reza pedia intermediação ao divino... "Santo António, Santatoninho te acuda Pai-nosso e Ave-maria" ...Aludindo ao soneto do Códice Conimbricense, à geral representação do "divino António" com o menino Jesus nos braços, diz que "Fiava-se Deus dele, e bem convinha – que desse António a Deus, o mais, que teve – se Deus a António deu o mais, que tinha" - expressão lírica que lhe dava azo em acreditar nos milagres feitos por Pádua – "O Santo" - fazia o que podia para tomar conta de mim, não seria por morar paredes meias com a capela que recebia mais graças. Todos os dias a tia Maria girava à sua volta com rezas, flores, azeite para o alumiar, e graças não sei se as recebia…
A míngua de recursos despertou na avó uma coragem sem igual, um dia volta-se para a minha mãe " Oh Dina as tuas galinhas estão muito magrinhas, vou leva-las para a Moita Redonda, trato bem delas, vais ver por aí a chegarem ovos com fartura"…proposta aceite, num ápice pediu cabanejos, enfiou todas as galinhas e de abalada se meteu na carreira onde se apeou ao alto de Lisboinha, mal se descuidou uma lhe fugiu às Alminhas...  Mais tarde a minha mãe pergunta-lhe pelas galinhas, altiva responde " oh filha atão não as vendi logo na 1ª feira do Ovelale" riposta indignada a minha mãe  "ora essa, a mãe disse que as ia engordar, agora diz-me que as vendeu…?" Diz a minha pobre avó " oh filha, atão não foi para me suprir!"...
Digo que não! Limpinho…Sem quê nem para quê lembrei-me da grande cicatriz que tenho por cima do joelho esquerdo, tudo por causa de uma liga feita de elástico muito apertada numa noite fria de inverno - , a pele estalou parece queimada ainda hoje. Quem será que foi? A minha mãe desculpou-se sempre com a minha avó…alguém também se desmazelou com a minha higiene "a tia Maria dizia que cabiam mãos nas feridas do meu rabinho" - seria tanto assim? Marcas só as das vacinas -, alérgica, bem marcadas ficaram para sempre, será que se confundiu?

No dia do meu batizado no adro da capela de Santo António o
s meus pais, a criada Lurdes do Alvorge comigo ao colo, o padre Freire de Lisboinha, primo da minha mãe e o Sr Zé André do Ribeiro da Vide
Na varanda da frente na casa dos meus pais com a minha mãe, avó Maria da Luz e a espreitar a prima Tina
No quintal, no tempo este talho não era nosso, em meados dos anos 60 os meus pais o compraram por 17 contos, sendo forrado a notas pela especulação dos imigrantes a salto para  França...
Varandim de pedra da janela que foi do meu quarto
Nascimento da minha irmãCorria o mês de dezembro de 58 quando a minha mãe deu à luz a minha única irmã com dezoito meses de intervalo. Felizarda apenas recebeu um nome próprio por opção da minha mãe -, tinha conhecido uma rapariga dona desse nome sonante para os lados de Chão de Couce nos Portelanos. De sua graça Filomena, - responde por Mena com alcunhas do nosso pai "Talego, Meio quilo, Contrapeso, Meio tostão" - ao invés de mim que me deram dois nomes Maria Isabel - gostaria apenas de ser Izabel -, a pensar na Rainha Santa , caminhante por terras de Ansião na estrada medieval a caminho de Coimbra e Ourém. Na verdade não simpatizo muito com o nome de Maria apesar de saber que é o nome da Imaculada Mãe de Jesus…pior seria se me tivessem dado o nome da minha madrinha - Piedade - valeu a minha mãe o rejeitar, ainda bem!
Em pequena a minha irmã " arremedava o meu nome chamando-me, Zá" assim o ouvia do avô "Zé do Bairro" pronunciar "Zabel". 
Foto com a minha Mena na Figueira da Foz
Foto a minha Mena a dar o ramo à noiva Tina, prima do meu pai, no dia do seu casamento 
Foto à la minut na feira de Santa Iria em Tomar a minha Mena e a minha mãe
A Mena no ciclo
A minha Mena - como sempre a chamei é herdeira de raízes mouras por parte do avô paterno "Zé do Bairro" e da avó materna Maria da Luz -, dona de rosto redondo trigueiro, olhos grandes castanhos, lábios grossos, bons dentes, peito firme, e farto que sempre invejei, só os cabelos lisos asa de corvo atestam a linhagem fenícia por parte da avó Piedade.
Irmãs, as duas de personalidade forte. A nossa infância é baseada na lembrança das tropelias, brincadeiras, teimosias, cumplicidades, irreverências, zangas de bradar aos céus -, as vezes que a tia Maria intercedia na mediação das brigas, também da vizinha "Alice do Pego" as vezes sem conta que foi aos Correios avisar a nossa mãe para vir a casa acudir à bulha e a " Carolina do Trinta" também. 
A minha Mena - cachopa de "meia altura" no entanto alta de inteligência, cariz  de liderança, rebelde, imaginativa, gozona, possuidora de mente muito criativa para coisas nada dadas a meninas -, mais às dos rapazes no prazer de mexer em pistolas, carros, espingardas, espadas, subir às árvores, argumentos suficientes para a nossa mãe a alcunhar por graça de "Maria rapaz" - ao invés de mim mais caseira, cúmplice, de forças descomunais, galga a correr no dizer do meu pai, levada da breca na facilidade em aceder às brincadeiras perpetuadas por si . 
Crianças irrequietas e terroristas -, hoje se diria crianças de comportamento disfuncional hiperativo, teimosas que nem uma "figa" endiabradas, de mente muito avançada à época, também da influência televisiva, tormentos, birras, metia pelo meio sova que se farta! 
O nosso quarto foi sempre das duas apesar das 5 assoalhadas da casa.
O "Armando Girafa" homem muito alto e forte colega do meu pai no Tribunal, nas horas vagas fazia de enfermeiro -, dava injeções, um dia chamado a nossa casa, apesar das dimensões do quarto na altura já serem razoáveis ao passar pelo guarda-fatos não equacionou a distância, ao baixar-se para acertar a agulha da seringa no paciente, antes de a espetar -, espeta o gordo traseiro no espelho, só ouvi os vidros estatelarem-se no chão. Depois de substituído ficou a mobília para nós, enquanto os meus pais estrearam uma nova. Tormentas passadas a fazer a nossa cama, culpa da nossa frenética teimosa. Havia uma manta muito bonita em tons dourados mas estreita, um dia a caturrice foi de tal ordem que nenhuma cedia, as duas a puxar para o seu lado - nisto estivemos a manhã inteira até à hora de almoço -, chega o nosso pai , nós naquele espetáculo e o almoço por fazer...grande a tareia que se dizia "malha" que as duas levámos, "remédio santo" apesar de doridas , outro remédio não tivemos se não em apressar o  almoço sem mais demora!
Capela de Santo António
Quando havia buliço na eira do Ti Raul Borges -, o mesmo do Chico sentado no selim da mula na pisa do trigo ou do centeio, no eirado na frente da minha casa, e a minha irmã no  circo pendurada na porta do guarda-fatos... O móvel que mais gostava do quarto - o psiché de espelho redondo e banquinho estilo arte nova , nas gavetinhas guardava os laços e travessões para o cabelo -, que a minha irmã nunca usou , sempre de cabelo cortado à tigela com franguinha. Em cima do tampo a minha mãe durante anos manteve uma candeia acesa ao deitar para a "Santinha" nos alumiar e proteger no sono, ritual herdado da casa da sua mãe, a candeia por se ter partido foi anos um pires da VA com pavio de algodão em azeite , no gavetão as camisas de dormir feitas na modista, camisolas interiores, meias brancas e cuecas feitas em casa com picô de renda. Decoravam as paredes dois quadros; um retangular com o Anjo da Guarda, outro com uma paisagem típica holandesa  com mulheres vestidas em traje tradicional, tairocas,  e tocas brancas rendadas na cabeça a fingir chapelinho com abas.Companheira fiel da creche a minha irmã e outros heróis de algumas histórias das nossas vidas, quase todos de cabelos alvos, nós e eles -, cachopos do Bairro de Santo António da vila de Ansião. No patim nada mais do que o terraço de terra batida em frente da cozinha ladeada por canteiros  com sombra de uma frondosa figueira cuja ramada deitada fazia a nossa delicia, não havia dia que não fosse escalada -, o nosso refúgio,a nossa cabana de piratas. No tempo dos figos que eram muito grandes, chamavam-lhes "bosta de boi" enchíamos num virote baldes para os porcos, não se comiam, eram do tipo enxabido. Na extrema dos quintais tínhamos os de pingo mel da minha tia Maria, esses sim doces de mel. Sentadas no dorso do ramo -, lugar estratégico ideal para se pescar, um divertimento de fim de verão quando as abóboras grandes trazidas da Lameira se empilhavam junto ao muro. Escolhida a maior a mais bojuda, abria-se ao meio com o facalhão, enchia-se de água e flores a flutuar, em punho canas improvisadas por nós com guita encerada de cozer as lombadas dos processos que o nosso pai trazia do Tribunal, o carreto, esse servia um carro de linhas que se roubava da caixinha de costura, os anzóis eram feitos de arame dos fusíveis do quadro eléctrico.Divertíamos-nos à farta, quem pescava mais tinha direitos, fazia menos tarefas domésticas na escolha das sortes!
Quase na extrema do quintal haviam umas "capelas imperfeitas"nome dado pelo nosso pai às casinhas baixas que nunca foram acabadas, idealizadas para serem um galinheiro, nelas brincávamos -, sendo duas, uma era minha outra da minha irmã com adegas -, os pipos eram as latas do Milo, a torneira feita na tampa com um prego, fechado com um espicho de salgueiro. Tínhamos uma predilecção para usar os serviços de porcelana de Coimbra da nossa mãe, café e de chá para servir os convidados nos baptizados das bonecas, eram muitas-, umas da Madeira ,ou de Coimbra. 
A minha casa vivia sempre cheia de cachopos, uma casa farta -, naquele tempo a vida era difícil, nenhum deles tinha as mesmas possibilidades que nós. Éramos endiabradas, fazíamos "trinta por uma linha" na liderança da comandita em fazer tudo o que nos desse na real gana -, em minha casa havia de tudo para os distrair desde televisão que nenhum tinha, rádios, telefone, brinquedos, jogos e muita comida. Chegamos a fazer galão com água e barro que se ia buscar ao pé do "cavalinho" raiz do plátano junto da escadaria da capela, bebia-se qualquer coisa...naquele tempo não havia leite, só em pó, anos mais tarde no Fundo da Rua houve uma vacaria do médico da Junqueira o Dr José Manuel.Tanta loiça que se partiu naquelas festas, lembro-me que um dia com as pressas fui à cristaleira da sala de jantar, o vidro que fazia de prateleira caiu, partiu-se praticamente tudo o que lá estava. Guardadora dos serviços de vidros da Marinha Grande, por sorte salvou-se uma garrafa e dois cálices de pé alto que estão comigo.
Os meus primeiros tostões…Roubados dos bolsos dos casacos do meu pai e da caixa dos trocos da venda de selos da minha mãe nos Correios. Outros ganhos mais honestos em casa a lavar loiça às criadas -, moçoilas do Alvorge Lurdes e a irmã . Os rapazes namoradeiros eram padeiros e irmãos: Júlio, Toino e Zé Carlos Godinho do Casal S. Braz. Depois do pão cozido e vendido, antes de voltarem a casa passavam para conversar com elas no muro que dá para o adro, não me lembro qual deles ia ao fundilho dos bolsos pegar nas moedas , sei que não me queriam à roda deles, isso sim, marotos, enquanto eu arrumava a cozinha do almoço, elas namoriscavam com aqueles lindos rapazes de olhos azuis. 
Outra boa fonte de rendimento surgiu mais tarde quando aprendi a manusear o PBX dos correios com 11 anos. Fazia as tardes de sábados, domingos e a meia-noite. Quem me pagava? A minha Titi, também a chefe da estação D. Maria Augusta Morgado e a minha mãe, rendia na altura uma moeda de vinte e cinco escudos, um turno de quatro horas. Uma noite o meu pai pagou-me com uma moeda de cinquenta escudos. O aparelho PBX tinha uma rede de mais de 80 assinantes, funcionava com sistema de cavilhas urbanas, com a ajuda de uma manivela acionava o toque do telefone nas casas dos assinantes locais, já as chamadas interurbanas eram pedidas à central de Pombal, mal estivesse em linha o assinante pedido era dado conhecimento com outra cavilha ao assinante que a tinha pedido.
Telefone com manivela para ligar ao correio

As chamadas locais eram assentes em verbetes que se espetavam num espeto de inox. Uma vez por mês enviados em listagem para serem cobrados aos assinantes. Cena insólita passada numa dessas trocas e baldrocas de cavilhas entro no meio de uma conversa de namorados - dizia a "Celinha dos Vinte e nove" (que Deus tem, nos a roubou tão cedo) para o namorado Zé Luís que veio a ser marido " deixa-me ir ver o arroz antes que esturrique…" havia horas de um tal emaranhado de cavilhas nos buracos dos telefones que não me lembro se alguma vez tive um descuido e, liguei alguém com outro que não fosse o solicitado, será que aconteceu? Difícil entender o Dr. Manuel da Junqueira quando pedia o número de familiares em Valado de Frades. Havia um assinante com o símbolo vermelho "Estado" o Dr. Faveiro então diretor das contribuições e impostos. Estava isento de pagamento. Urgente ser atendido sem delongas!
De tenra idade aprendi com o meu pai a manusear a arma de fogo... em família fomos de táxi a Coimbra ao armeiro numa das ruelas da baixa comprar a arma e apetrechos. Calibre 16, canos serrados e porte elegante de cunha em raiz de nogueira. Fascinava-me quando a limpava com os escovilhões, e a vareta de flanela no final, depois de bem tratada era pendurada no cabide pela correia de cabedal.
O nosso pai gostava de nos ensinar. Os cartuchos enchiam-se na loja ( nome que é habitual se dar à cave que serve de adega e arrumos com uma escada de madeira que fazia a ligação com a casa, o que era confortável . Sobre a bancada onde cada uma fazia a sua tarefa com a dosagem de pólvora, acho que ainda era mais outra coisa, mas a memória atraiçoa-me, no final eram comprimidos com as tampinhas na máquina para ficarem hermeticamente fechadas -, regalo era encher a cartucheira. 
Ao entardecer depois do trabalho no Tribunal convidava-nos para com ele irmos à caça na direcção à quelha do Vale a caminho da encosta dos Escampados, connosco ia o cão perdigueiro Kaiser. Sentia que tinha uma grande preocupação em nos transmitir as regras segurança, até porque ele quando jovem sofrera um acidente com uma arma que lhe levou o dedo indicador da mão direita.Quanto à caça propriamente dita não me lembro de ver nada pendurado ao cinturão da cartucheira,enquanto eu e a minha irmã nos abrigávamos em segurança junto a um pinheiro o "senhor tordo" já ia a caminho do Ribeiro de Albarrol...Nunca dei um tiro sinto uma repulsa em "matar"!
A primeira vez que o fiz foi por força maior na conversa ao portão com o Cotrim e o Luís Lucas. A minha mãe telefonou para fazermos o farnel que de madrugada rumávamos até Espanha para a feira de S. João, nisto a minha irmã virou-se para mim e manda -me matar um frango,respondi que tinha medo - o que lhe deu o mote de me provocar  em frente dos rapazes "é assim que queres arranjar namorado e casar?" envergonhada, arranjei coragem fui direita à capoeira e apanhei um branco dos grandes, logo o entalei  entre as minhas perna virei-lhe o pescoço para cima e meti-lhe a faca -, naquilo o frango dá um grande salto, desarvora sem cabeça a cambalear por entre os talos das couves galegas, era só sangue, todos se riam...pior fiquei eu tive de correr atrás dele , meter-lhe a faca outra vez, ainda tive de limpar todo aquele cenário de massacre!

Aos 11 anos eu e a minha irmã construímos a casota do nosso cão o "Turco" ...está nos genes, o nosso avô paterno "Zé do Bairro" era pedreiro.O que fizemos foi imitação do que tínhamos visto fazer num arranjo na padaria, assim escolhemos o local junto ao muro, foi só levantar  duas paredes laterais, mais difícil a placa  feita com uma estrutura de suporte com tábuado, usámos rede dobrada que cobrimos com a massa: areia, cimento, brita e água -,obra de pedra e cal mais de 20 anos, certo foi não ligar aos remates, e com isso constatamos que a rede se prendia nas saias quando nos sentávamos, e a corrente do cão também...
Desde miúda que a curiosidade despertou em mim... outras vontades além dos estudos, de saber fazer, questionar coisas ligadas à terra.
Pequenita a meu pedido, o meu pai disponibilizou um canteiro de terreno atrás da casa para eu fazer as minhas sementeiras.O que restava do carrinho de bebé fazia de tractor. Com orgulho as minhas batatas eram as primeiras a serem consumidas, igual o meu feijão verde. No dia da festa de Santo António em Junho, dia da primeira colheita para oferecer na fogaça. Que raiva sentia a minha tia Maria de o dela ainda nem florir, esquecia-se ela que eu o semeava mais cedo, de volta dele andava por causa do piolho, quantas vezes o voltava a semear, tal a insistência e carinho, só assim era possível, também porque estava abrigado o canteiro!
Sempre me recordo de beber vinho às refeições... não propriamente as chamadas "sopas de cavalo cansado" mas depois de comer a sopa de "entulho" há também quem lhe chame sopa da pedra ou comida à moda da terra tantos nomes para a mesma sopa  com ossos, carnes, e enchidos -, que os "ratinhos" introduziram na lezíria quando aí se deslocavam sazonalmente nas vindimas. Nada mais do que sopa de feijão com couve-galega, lombardo, batata, nabo, abóbora ( nessa altura não usava cenoura), cabeça de porco, morcela, chouriça, presunto, ossos e toucinho entremeado. No caldo havia gente que gostava de misturar um pouco de vinho e beber. Eu sempre preferi beber ao copo,caso fosse palheto, escorregava que nem se sentia, nunca fiquei com o "grão na asa". A minha mãe ralhava demais -, nunca gostou que eu e a minha irmã bebêssemos.Tinha medos, até chegava a dizer-nos"vocês foram gerecidas no álcool" não quero que sejam como o vosso pai e avó, nada mais feio que uma mulher bêbeda, as minhas filhas não!O meu pai aparecia em casa esquinado dia sim, dia não - um horror, perdia o controle e a razão. Um demónio vivo que assustava tudo e todos .Vivia-mos com o "coração nas mãos". Aos domingos a minha mãe fazia sempre um bolo, havia fartura de nozes que eram partidas a martelo. Fazia grandes tabuleiros de palitos para toda a semana, as nossas bolachas caseiras. De roda dela na cozinha com o grande livro Pantagruel ajudava a bater a massa com colher de pau, se porventura cresciam mal, a culpa era sempre minha, não tinha mexido sempre para o mesmo lado. Prazer desvairado de sempre a lembrança de ver o bolo entrar no forno, logo me sentava no rebate de calcário oolítico a lamber os resquícios de massa que escorriam no pequeno alguidar vidrado de cor verde!

As férias de verão... durante anos foram passadas na Colónia Dr. Bissaya Barreto na Gala na Figueira da Foz.Os nossos pais deixavam-nos em Coimbra junto ao muro da Penitenciária onde entravamos num autocarro rumo à colónia. Chegados, éramos divididos consoante as profissões dos pais -, eu e a minha irmã pertencíamos aos Serviços, haviam os Plásticos, o Comércio...nos balneários todos tomávamos banho, em fila tipo tropa era dada a fatiota -, calção azul e camisola branca, acontece que nem sequer se preocupavam com os tamanhos, um ano nos meus calções cabiam dez...
Nestas casas aprende-se a ser esperto e ter pé ligeiro, havia gente do centro até Viseu, astutos, pobres, então não nos roubaram logo no 1º dia as lindas camisas de noite feitas de propósito pela modista Lucinda do Fundo da Rua, nunca mais lhe pusemos a vista em cima. O nosso pai mandava-nos na mala amostras de vinho do Porto que à noite se abriam e faziam a delícia de quem se abeirasse de nós, até que um outro dia também ficámos sem elas.Aprendi rápido a ser espevita e maldosa. Uma noite troquei os meus calções pelos do "pão dezassete tostões" alcunha que lhe tinha posto logo que a conheci pelo formato da cabeça me fazer lembrar o pão que todos os dias comprava na padaria. A comida era terrível tinha um travo e cheiro a fénico, nunca tinha comido polvo, odiava aquele arroz escuro com tentáculos, pareciam sardaniscas. A mais valia é que tal como em nossa casa, aqui também liderávamos o  grupo de Ansião, sentadas na mesma mesa, coitada da filha do Guarda Fios Farinha, obrigada a comer não sei quantas sopas, também as cachopas do carteiro João Luís dos Netos. A deambular pelo refeitório tipo polícia -, o Sr Marques, homem rude, baixo, óculos e régua em punho naquela de manter o silêncio, na obrigação de se comer tudo o que punham no prato. De manhã filas indianas pelas dunas a subir e a descer parecíamos cobras a serpentear na areia a caminho da praia. Tanta brincadeira, cachopos em circulo, quem tomava conta de nós -, a Regente da escola de Albarrol. Adorava o jogo do prego na areia molhada, pior mesmo o ritual do mergulho com o banheiro pelo medo que fiquei , ainda hoje não consigo mergulhar, já as boas lembranças ficaram do lanche à tardinha com as mulheres que demoravam em chegar de cestas de verga à cabeça cobertas com panos brancos -, o lanche nada mais do que quartos de pão de quilo com grossas fatias de marmelada.Muito gulosa a minha irmã ficava com a minha marmelada, eu com o pão dela...
Lembro-me de um dia termos recebido uma encomenda da nossa mãe com umas sandes de carne assada, simplesmente embrulhadas em papel vegetal dentro de uma caixa de sapatos que pedira na sapataria do Gaspar.Esquecer é que não, pão duro e carne seca...
O melhor? Nunca em ano algum fizemos a temporada completa, ao 3º domingo os nossos pais apareciam mortos de saudades.De olhos fixados nas filas indianas com centenas de miúdos vestidos de igual, a descoberta era árdua, difícil, todos diferentes, todos iguais. Repararam na minha irmã porque trazia no bolso de trás dos calções um papo-seco rijo que sobrou da tal encomenda...Visivelmente incomodados por tal, apesar de nós dizermos que tinham chegado rijas que nem "cornos" mas no caso nos souberam que nem ginjas!
Na colónia havia um anfiteatro para fazer peças de teatro e outras actividades.Todos os pavilhões forradas com bonitos azulejos da fábrica de Aveiro.Voltei ao espaço 40 anos depois, fiquei triste por tanta coisa ter mudado!

A minha infância e a da minha irmã… Acabou por se cifrar cheia de emoção e movimento embora fosse marcada por excessos de álcool que o meu pai não aguentava, nos disparates que fazia, das valentes tareias que levámos, da educação austera que sempre soubemos dar a volta, das mortes dolorosas na família, apesar de tudo isto, as novidades, os brinquedos, as surpresas eram uma constante.

A nossa mãe delirava com as "compras a prestações" feitas a um viajante de Lisboa com a sede nos Restauradores em Lisboa -, Casa Erdan: pequenos eletrodomésticos; a batedeira, o serviço de vidros em cristal, os trens de cozinha, as colchas de seda lavradas e,... 
Por catálogo comprava roupa: Armazéns do Norte e Marques Soares; na carreira vinham bolos e amêndoas das pastelarias de Coimbra; vinhos das caves da Anadia; árvores de fruto dos viveiros de Ceira, nem conhecíamos tantas espécies, traziam a latinha presa com o nome; muita roupa confecionada nas modistas de Ansião; mobílias novas; compras das novidades nos bazares; criadas…e passeios à fartura, boa comida, que congelados não entravam na altura em casa!

Viagens ao Porto… A minha segunda vez em excursão diretos ao estádio comprar o bilhete para o meu pai assistir ao seu Benfica, julgo que mulheres só as três, andámos a passear pela Ribeira, Torre dos Clérigos, jardim António Nobre com encontro marcado junto ao Hospital de S. António encostadas no rebordo do muro, chuviscava,reparei nas frontarias dos prédios em granito escorriam água, escuras, não fiquei a gostar do Porto …Hoje adoro o Porto! De abalada passagem em romaria à capelinha de Santa Maria Adelaide em Arcozelo, nunca tinha visto uma Santa em carne e osso morta…coisa que me andou a deambular na cabeça anos e anos.


Passeio pela Bairrada… Paragem na Curia para desfrutar dos jardins e do passeio de barco no lago. Almoço na Mealhada no Pedro dos Leitões. Adorava saborear as batatas fritas em rodelas estaladiças e o bom pão. De seguida partida em direção ao Luso para beber água cristalina das bicas em fila onde tirámos fotos com o Armando Cardoso e a esposa D. Lurdes. Visita ao jardim e ao palácio Real do Buçaco, ultimo legado dos Reis de Portugal, ainda tempo para uma visita ao Museu Militar, trajes e armas das Invasões francesas. A Mata Nacional do Buçaco inicialmente plantada pelos frades Carmelitas no princípio do século XVII que escolheram este local para a sua reclusão, local paradisíaco, botânico e paisagístico com honras de ser único na Europa, tal a infinidade de verdes, fetos altíssimos, cascatas, caminhos, refúgios. Na Cruz Alta tentámos avistar o mar, o meu pai teimava que se via em dias claros…

Luso com os meus pais e irmã
Banhos a Buarcos…Férias os dias eram passados na praia com as famílias do "Armando Girafa" e do Virgílio Valente que nos levava no seu táxi. Paragem obrigatória antes da Gala nas salinas à beira da estrada vinda do Paião a caminho da Figueira, petiscavam-se enguias fritas nuns barracões de madeira a cair de velhos com cheiros a sal e maresia, ao longe as salinas com  montinhos de sal e de roda delas via homens e mulheres descalsos de canastras à cabeça abarrotar em correria os despejavam na casinha de madeira, voltavam a ir e, a vir. 
Uma vez na praia os homens fizeram um grande buraco, o meu pai atrevido enfiou-se dentro, só com a cabeça de fora, ficamos assustadas, éramos tão pequenitas. Curiosamente lembro-me dos fatos de banho dos meus pais, únicos em destaque dos demais, o da minha mãe estampado em tons de castanhos outonais com as costas em elásticos que lhe conferia uma silhueta ímpar, o biquíni do meu pai em azul forte era habitual,  e em cuecas quando se esquecia de o vestir. A minha irmã ainda tirou uma foto no cavalinho à la minute, eu amuada não quis, pena, tenho hoje, tirei uma com uns 4 anitos numa estrada junto a uma casa alta nas imediações da Figueira da Foz que perdura até hoje. 
Senti um rasgo de memória ,acabei de me lembrar da primeira vez que saboreei sapateira em Buarcos, um petisco dos homens habitual nas férias, deram-me uma pata que parti com os dentes, fora isso, só cheirava o petisco, não gostava do aspeto de "papas". Ficava feliz com a carcaça que trazia para casa e aproveitava como saboneteira junto à torneira do quintal. Motejo para falar da canja -, uma das "herança das Invasões Francesas" o meu pai gostava de contar estórias, contou-nos que tinha sido na Figueira da Foz que a canja tinha ganho fama. Na altura tinha o nome de "canja de galinha para doentes". A história remonta aos primeiros dias de agosto quando Wellesley e os seus soldados franceses desembarcaram em Lavos, estabelecendo ai o seu quartel-general durante cerca de 8 dias, o tempo que demorou para todas as tropas chegarem a terra, estando débil, serviram-lhe canja de galinha que o curou da maleita, de tal maneira surpreso com a cura decide dirigir uma carta à sua esposa, Kitty Pakenham onde descreve a dita sopa e que constaria para além da galinha, orelha e toucinho de porco, enchidos, couve, massa, cebola e sal. Nesse tempo para se degustar a canja cada comensal teria junto a si uma malga para a sopa, um prato para as carnes servidas à parte e, ainda havia outro prato com hortelã de que cada um a gosto se servia.  Fácil é perceber que a conhecida "Sopa de Pedra" deve ser também de igual modo servida com as carnes à parte do prato da "sopa de entulho" .Mais heranças do tempo de invasões. Na região Lousã nasceu outro afamado prato deste tempo -, a chanfana que o tempo alargou a outras (Vila Nova de Poiares, Guia, toda a região centro). Conta-se que os desertores do Buçaco por onde passavam pilhavam os bens à população, comida, riquezas e honra das mulheres. Aqui por terras da Lousã os desertores roubaram os animais novos deixando as cabras -, a população remédio não teve senão as matar, e com medo de nova invasão enterrou alguidares com a carne em vinho para se conservar, como não passou mais nenhum foragido os desenterram e cozinharam, regalando-se com tal repasto acabadinho de inventar. 
No Rabaçal o povo precaveu-se ao enterrar as imagens de pedra da igreja no caminho defronte da mesma. Há coisa de meia dúzia de anos foram encontradas por mero acaso quando faziam uma obra de saneamento, ao fim de mais de 200 anos. O que ainda estará enterrado e perdido desses tempos. Também se diz que as mulheres gostavam deles, os esconderam e protegeram à coberta de nomes portugueses para não os verem presos, por isso existem tão poucos apelidos de raiz francesa em relação à sua descendência que é brutal. No pior, na região fizeram fogueiras em lugares de culto: na capela do Santo António no Bairro de Santo António, na capela S. João na Quinta das Lagoas, na capela do Sr. do Bonfim e, na capela da Guia tal e qual igual à da Constantina, possivelmente não conseguiram arrombar as portas e, a fizeram do lado de fora debaixo do alpendre.  
Primeira vez em Lisboa…Viemos todos acompanhar a minha mãe que vinha a uma formação profissional. Só me lembro da tourada no Campo Pequeno, do jantar na Portugália -, miúda pequena sei que na mesa o empregado colocou uns martelinhos e umas tabuinhas. Imitei os adultos, naquilo usei de grande força, num relance só vejo as patas do lagostim irem pelo ar, estatelarem-se no chão, sem pudor de rabinho no ar as apanhei num abrir e fechar de olhos, seria pecado deixa-las no chão sem as saborear, as sacudi, dei um beijinho como sinal de purificação. Regalei-me. Gostei do ritual e das travessas com batatas fritas acompanhadas de mostarda, nunca tinha visto nem saboreado tal condimento que na verdade não apreciei muito na altura e, hoje gosto. Não parava de olhar para os viveiros, neles lagostas azuis e lagostins a nadar. Também da visita ao jardim zoológico, dos macacos e do cemitério dos cãezinhos. 
Em reflexão atesto que tive uma Infância cheia de emoção, apesar de alguns tormentos!


Cenas da vida de casa…Maldita que não se enxerga, sem quês nem porquês, se lembrou de tirar o cano do telhado fulcral avisador do tanque cheio no sótão na hora de desligar o motor elétrico para parar de jorrar água para o patim. Tormenta maior todas as semanas havia festim. Cegas. Andava eu com a minha irmã nas brincadeiras. Sem o maldito cano a água espalhava-se pelo sótão, descia a escada em cascata, pior entrava pelas rachas da placa e caia em cima dos móveis. Exímias em pouco tempo executávamos o trabalho com brio e excelência. As batatas no sotão nadavam, inundava-se  o quarto da costura. Desatino total. O melhor? Nunca fomos apanhadas. Nunca desconfiaram. Metódicas com nota de excelente trabalho de equipa na execução de tarefas catastróficas em tempo recorde. Fantásticas. Cada uma sabia bem o que tinha de fazer e bem feito. Muitas das vezes para não dar nas vistas mudávamos a casa toda, as salas e os quartos virados de pernas para o ar, uma mania que teima persistir e a minha filha Dina herdou. "O nosso lema - Valente e Valente Lda.Bons os banhos tomados neste tanque cuja água era usada na casa... e dos tomados de mangueira na loja. No pior ao abrir a torneira do patim com o motor ligado era choque garantido -, a "filha da mãe" nunca esteve ligada à terra, tantas descargas em nós "de caixão à cova" e sovas pelo couro da nossa mãe quando nos apanhava -, galgas lhe fugíamos, no seu dizer de raiva " suas malditas, estafermos, sempre a inventar, agora tingem roupas"… ao lume na panela com água a ferver e pozinhos comprados na loja do Carlos Antunes, um desatino. 
Na minha casa comer em paz? Deveria ser. Implicativo aquele meu pai por tudo e por nada, julgo pela saúde frágil, esquisito com a comida, tudo lhe fazia mal, a minha irmã também não ajudava, irrequieta, teimosa, só fazia o que lhe dava na "telha" persistia comer com as mãos em vez de usar os talheres, havia horas de exaltação e até bofetada "de meia-noite" às refeições. Qual quê, a comida não surtia efeito, tão pouco era saboreada, uma pilha de nervos sempre com medo dele, imprevisível tinha momentos que se transformava num demónio. Martírios que todas passámos e não foram assim tão poucos. Coitada da nossa mãe, e de nós! 


Queixas da minha infância, no tempo o que nos faltou? O mesmo que aos demais, mais carinho -, não era um hábito naquele tempo o dar aos filhos, tenho dias que me esforço para lembrar colinho, beijos, carícias, palavras doces …ingrata! Reconheço que tanto eu como a minha irmã fomos umas terroristas, irrequietas "fazíamos trinta por uma linha" imprevisíveis, tínhamos o diabo dentro de nós, dávamos volta à cabeça à nossa mãe, tamanhas agruras a fizemos passar, até vergonhas com atitudes impensadas de rebeldia para terceiros…quando nos perguntava pelo troco das compras da mercearia, respondia-mos "está na barriga" éramos imprevisíveis
Não me posso queixar, na minha casa sempre houve bastante fartura de tudo, as tradições eram cumpridas. Para a ceia de Natal a minha mãe encomendava pelo telefone da Briosa ou café Império de Coimbra o famoso Bolo-rei nos anos 60, encomenda  que fui buscar durante anos à camioneta do Pereira Marques em frente da farmácia no Largo do Município, naquilo via chegar afogueado o meu pai para buscar a dele das Caves da Mealhada ou da Anadia -, uma maleta entrançada de raspas de pinheiro com letras vermelhas e asinha como as malas de cartão cheia de garrafas: aguardente velha; licor Beirão; Triple seco; Lágrima de Cristo e ainda miniaturas de vinho do Porto para as crianças. O melhor? Nem eu nem a minha irmã apreciávamos o bolo-rei, tal a fartura de guloseimas em casa o nosso maior divertimento consistia em esburacar o bolo para lhe tirar as frutas cristalizadas que na altura só ela gostava na sorte de encontrar a prenda que trazia embrulhada em papel vegetal, a fava é que nem vê-la. Em 69 a minha mãe fez-nos pelo Natal uma surpresa inesquecível. Comprou a prestações um Cabaz de Natal. Grande era o camião que parou junto à nossa casa. Eu e a minha irmã assistimos ao aparato -, grande caixa que deixaram no chão da sala de visitas. Verdade seja dita se melhor o pensámos melhor o fizemos foi logo ali aberta com cuidados "num esfregar de olhos" só para ver o que a caixa trazia, voltámos a fechar e pela tardinha os nossos pais chegaram do trabalho e felizes com a chegada do cabaz à nossa roda disseram para o abrirmos, o que fizemos de assentada sem pestanejar, tão emocionados com a nossa alegria nem se aperceberam que já tínhamos visto o que a caixa trazia...contentes estávamos com a surpresa, no melhor cada uma a tirar garrafas de sumo concentrado, a nossa primeira vez que tal bebemos, ao tempo só mesmo se conhecia por aqui laranjada e gasosa -, delicioso V5 néctar da Compal, uísque, vinho do Porto, aguardente velha, bacalhau, azeite, nozes, passas, caju, amêndoas, tâmaras, frutas cristalizadas, chocolates, bombons, presunto, goiabada, bolos secos, queijo da serra e da Ilha de S. Jorge picante, miniaturas de Cavacas -, logo imaginamos fazer delas copos para beber o nosso vinho do Porto, também trazia prendas para as meninas: duas bonecas loiras com o seu carrinho cor-de-rosa, ainda enfeites para a árvore de Natal, bolas grandes em azul celeste.
Dos Correios no início de 70 começamos a receber também prendas pelo Natal. Nada a propósito de ser para menino ou menina, eram prendas. Lembro-me de uma grande girafa e de uma bola colorida aos gomos de plástico fino, a nossa mãe escondia-as atrás da porta do seu quarto que tem um recanto, levadas da breca sempre demos conta de tudo, assim se perdia o encanto da surpresa, mas fingíamos que não…Da nossa mãe recebemos um legado de valores: educação; responsabilidade; método; trabalho e poupança, apesar de ter tido mais que a maioria, nem eu nem a minha irmã apesar de mais indisciplinada, nunca nos deslumbramos com o mundo -, esse um grande ensinamento, ainda que devemos fazer por merecer, não receber de mão beijada…Em casa recebemos educação formal, e na escola uma educação informal, as duas se deveriam ter completado -, lacunas houve. A conquista maior é tratar todos com carinho, respeito e dar valor ao trabalho. Única alegria que lhe demos, ao contrário do que possa parecer a muita boa gente, tanto eu como a minha irmã singrámos sozinhas no mundo do trabalho, não foi preciso "cunhas" nem pedidos, muito menos entrega de presentes, também não demos desgostos de maus vícios.
Sempre vimos na nossa mãe uma boa mãezinha (como sempre lhe chamámos, hábito perdido após a morte do nosso pai, com ele também se foi o trato, passou a ser por "tu"… grande amiga de todos os dias, pelo jeito continua! 
Os meus pais
 Abençoada foi com duas boas filhas. Uma Mãe assim, não deveria morrer jamais!

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