sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Bocage a sua vida pelo oriente!

Deliciei-me  ao abrir por acaso uma Crónica Feminina nº 463 de 7.10.1965 que encontrei no sótão da casa de minha mãe com a história do Elmano Sadino.

«Manuel Maria Barbosa du Bocage desertou de Damão para a China. Fundam-se em hipóteses, vários investigadores,  em que data teria ele embarcado em Surrate com destino a Macau, admitem, uns, que tivesse sido em abril, outros, em maio e outros em junho por ser a época da monção mais favorável.
Talvez tivesse sido em maio, o que lhe daria tempo de atingir Cantão onde se julga ter ele aportado em julho de 1789.Era, porém, sei intento desembarcar em Macau.Levava algum plano definido?Parece que não.Os fatos apenas nos induzem a pensar que,depois da deserção, da qual talvez já estivesse arrependido, o poeta andava à toa.Proscrito em terras da Índia Portuguesa, restar-lhe-ia a esperança de obter acolhimento benévolo por parte do governador de Macau.
A viagem não foi feliz.É o que se deduz de algumas referências dispersas pelos seus poemas.Fala de tempestades, de tufões que o arremessaram para os mares da longínqua China. Parece que o navio, em vez de fundear normalmente, arribou desmantelado a Cantão, velho porto do antigo Celeste Império Assim se depreende deste lamento, em que se recorda a sua vagabundagem pelo Oriente.
Por bárbaros sertões gemi vagante;
Falta-me ainda pior, falta-me agora
Ver Gertrúria nos braços de outro amante!
Sabia que Gertrudes de Eça namorava outro homem; ignorava porém, o nome do seu rival. É nessa mesma ode , referindo-se a Goa, afirma:
Mais duro fez ali meu duro fado
Da vil calúnia a língua viperina;
E surge depois a revelação do imprevisto rumo que os temporais o obrigaram a tomar:
Até que aos mares da longínqua China
Fui por bravos tufões arremessado
Parece que só a muito custo o navio logrou alcançar Cantão, onde fundeou com os mastros quebrados e as velas esfarrapadas. Sem recursos, num território inteiramente desconhecido, cercado de uma população exótica, que não lhe mereceu o menor interesse, e talvez hostil, Bocage sentir-se-ia o mais desgraçado dos mortais, vendo-se na necessidade de mendigar para comer.Supõe-se que durou três meses essa triste situação. Estava a pagar bem caro o momento de irreflexão que o levara a desertar.
Lamenta a sua pouca sorte e revolta-se contra a pátrea indiferença com que naquela terra de abundância escutavam as suas súplicas de pobre de pedir:
Se a vasta, e fértil China
Fofa de imaginária antiguidades,
Pelo seu pingue seio
Te viu com lasso pé vagar mendigo
Se a mirrada avareza,
Aferrolhando os cofres prenhos de ouro
Lá onde o sol o gera,
Foi mais duro que mármore a teus versos...
Preocupado com a sua própria pessoa, num egocentrismo que há-de acompanhá-lo quase até à morte, Bocage não tem olhos senão para ver-se a ele mesmo e a tudo quanto possa ter um reflexo benéfico ou maligno na sua personalidade de brilhante poeta. Queixa-se de incompreensão, porque se lhe afigura que nunca os outros lhe concedem o respeito e a admiração que o seu génio merece.
É na veneração de ele próprio que vive três anos na Índia, sem sequer fazer um ligeiro esforço por compreender aquele povo de tradições milenárias, por admirar a paisagem que a todos encanta, por estudar as religiões que o cercam. Os idiomas orientais são para ele expressões grotescas que não vale a pena aprender.Quando alguma vez, por mera alusão ocidental, nos fala do interior indostânico cita com horror os "tigres", que certamente não chegou a ver, e os "palmares", cuja beleza não surpreendeu.O mundo em que vive só o interessa nos pormenores que influem direta ou indiretamente nas suas ambições,nos seus despeitos, nos seus amores e nos seus ódios.
Os seus olhos não se deslumbram com as paisagens, e os povos exóticos que teve a rara felicidade de visitar.Quase nem os viu. Deles o seu espírito não pode recolher impressões profundas que fizessem vibrar a sensibilidade de poeta até ao ponto de lhes consagrar os grandes poemas de que o seu génio se mostrou capaz. É em Cantão que lhe chega  a notícia da morte de  D.José, príncipe do Brasil e herdeiro da coroa de Portugal. Bocage não o conhecia em particularidades íntimas do seu espírito, como o conheceu lorde Beckford. O poeta não o teria visto senão alguma vez de longe, quando ele passasse na sua carruagem real. Muito sensível às aparências principescas, lamenta o povo português pela perda que acaba de sofrer, mas não resiste a lamentar-se logo em seguida a ele próprio, como pode ver-se:
Triste povo!E mais mísero, eu que habito
No remoto Cantão, donde Ulisseia,
Não pode a ti voar meu débil grito!

Misérrimo de mim, que em terra alheia,
Cá onde muge o mar da vasta China,
Vagabundo praguejo a morte feia!
Parece ter deambulado em confrangedora situação naquela terra chinesa durante três meses, admitem alguns autores, até que, por fim,não se sabe com que recursos, consegue aportar a Macau, onde desembarca em extrema miséria.
Podiam tê-lo capturado como desertor. Mas Lázaro da Silva Teixeira, ouvidor da cidade de Macau, que por essa data governava interinamente aquela colónia, teve pena dele e, em vez de o perseguir, socorreu-o. Logo planeou repatriar o jovem, que bem necessitado estaria de refazer-se nos ares pátrios. Pressente-se ter havido um movimento de ternura e simpatia dos portugueses de maior destaque em volta do poeta, que ali aportara semi nú, deprimido e a cair de fome. Ele não podia senão mostrar-se grato, por muito que isso pesasse à  altivez do seu caráter. Não constitui, pois,vulgar bajulação, tanto em uso nos poetas setecentistas, a ode que ele intitulou assim:A Gratidão, oferecida ao Senhor Lazáro da Silva Teixeira, desembargador da Casa da Suplicação e Governador interino de Macau.
Amenos campos, agradável clima
Onde o meu Tejo por areias d'ouro,
Por entre flores, mumurando e rindo
Límpido corre,

Paternos lares, que saudoso anelo,
Sacros Penates, que de longe adoro,
Suave asilo que perdi, vertendo
Lágrimas ternas.

Eu torno, eu torno,por amor guiado,
Exposto às fúrias dos tufões, dos mares...
.......................................................
Se eu vounas aras dos Penates caros,
Pendurar votos, consumir incensos,
Depositando sobre a lísea praia
Ósculo grato;

Se as inocentes, fraternais carícias
Vou cobiçoso recobrar na pátria.
Em cuja ausência fugitivas horas
Séculos julgo;

Se as cãs honradas vou molhar de pranto
Ao sábio velho, que me deu co'a a vida
Os seus desastres, por fatal, por negra
Lúgubre sina:
.........................................................
Tudo a ti deve, ó benfeitor, ó grande,
Que a roçagante, venerável toga
Mais venerável pelos seus preciaros
Méritos fazes, etc.

Joaquim Pereira de Almeida, abastado negociante, tornou-se à sua conta, hospedando-o em sua casa, e relacionou-o com a família, mais gradas de Macau. Assim, a vida tornou-se fácil, enquanto aguardava navio que o trouxesse de volta à Europa.E ainda para as passagens e mais despesas recorreu à bolsa generosa de D. Maria Saldanha Noronha de Menezes, escrevendo um poema em que lhe lisonjeava os filhos,conforme se lê nestes dois tercetos;
Roga-lhe, roga-lhe, enfim, que te destrua
As ânsias os tumores;
Que à pátria, ao próprio lar te restitua.

Ah!Já disse que sim:não mais ciamores!
Musa, musa, descansa.
Cantemos o triunfo, oh,esperança!
Não se sabe com exatidão em que data Bocage largou de Macau. Sabe-se apenas que foi no ano de 1790. Parece que, pela primeira vez,uma longa viagem decorreu com felicidade para o vate.Devia sentir-se ansioso por chegar. Imaginemos com que enternecida comoção ele não teria entrado a Barra, subido o Tejo,admirado a Torre de Belém, de uma graça única no Mundo, contemplando o mosteiro dos Jerónimos e lançado ferro, talvez,mesmo defronte do imponente Cais das Colunas:Uma vaga esperança de reconquistar a sua Gertrúria, só com o poder mágico dos seus poemas, recitados de viva voz, encher-lhe-ia o coração de venturosos presságios.
Ninguém sabia que ele regressava. Não havia pessoa alguma conhecida no Cais à sua espera, o que era plausível. Melhor!Mais saborosa seria a supresa de o tornarem a ver. Já teria chegado  a Portugal a notícia da sua deserção?Era provável. Mas isso não empanaria o contentamento que o seu regresso iria causar. Tentaria refazer a sua vida em Lisboa. Com uns bons empenhos de seu pai, talvez pudesse obter um bom lugar na burocracia.Possuía uma sólida educação;empregos por certo não lhe faltariam.Agora o principal era ir abraçar a família. Tomou sem mais demora o caminho de Setúbal.Sentia-se impaciente por estreitar seu pai contra o coração.
Pensaria como no seu poema:as cãs honradas vou molhar de pranto ao sábio velho...
Aguardava-o, porém, a mais surpreendente das desilusões . O doutor Soares Barbosa recebeu-o friamente.Ressentido por seu filho ter desertado?O poeta dar-lhe-ia explicações: o clima dissolvente de resistências morais,a tacanhez do meio , a duplicidade asiática os maus conselhos de um companheiro...As duas irmãs casadas mantiveram-se distantes. Maria Francisca.a mais nova,não vivia em Setúbal.Teria perguntado por seu irmão, o Gil Francisco. Disseram-lhe que casara.Ah, sim?E quem era a esposa?Gertrudes de Eça. A Gertrúria que ele tanto amara, a sua primeira paixão séria, a mulher por quem se expatriara e tanto sofrera para conquistar uma posição de que ela se orgulhasse! O irmão não hesitara em roubar-lhe a noiva, esta não tivera escrúpulos em trocá-lo por seu irmão.E o sábio velho aprovara esse casamento.A donzela não podia ficar indefinidamente  à espera de um estouvado que fora para tão longe tentar fortuna e que ainda por cima desertara nem se sabia para onde...
Então, sentindo-se de súbito só,muito só no Mundo, sem família, sem amor, sem esperança, o pobre Manuel Maria deu meia volta e tomou sombriamente o caminho de Lisboa.»

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