sábado, 26 de maio de 2018

Arte de respigar o rebusco do desperdicio dos outros!

Há filmes que nos deixam a pensar como o de ontem na TV2 de Agnès  Varda - Os respigadores e a respigadora de 2000.
A grosso modo respigar é a apanha dos restos após efectuada a colheita de legumes, fruta ou cereais cujos donos deixam ficar nos campos,  árvores e nas estufas, pela falta de calibre, defeito ou excedentário para as cotas de mercado porque baixa o preço.
A palavra rebusco surge no mesmo âmbito que o respigo, mas opõe-se-lhe num sentido, pois refere-se ao que vem do arbusto ou da árvore e não ao que vem directamente da terra ;cereais, batatas, e das estufas; tomate, pepinos, pimentos, morangos.
Rabiscar é o respigar e rebuscar de gente pobre para se alimentar do desperdício bom que outros deixam. Em França são sobretudo comunidades de minorias entre as quais ciganas e desempregados que vivem em auto caravanas.

Agnès Varda, a autora do filme
Pode a  imitar uma respigadora
A autora partiu de um célebre quadro do pintor francês Jean-François Millet.
As respigadoras na apanha da espiga para  fazerem pão . 

Quadro de Silva Porto - Ceifeiras
Rodado em França dando uma visão dos respigadores de campos, de todas as idades, homens velhos, e mulheres jovens em que alguns cantam e outros em silêncio solitário apanham desperdícios, rebuscam nas sobras dos mercados, procuram os restos nos caixotes do lixo para se alimentarem (são deitados para o lixo produtos embalados com datas fora de validade mas que na realidade tem mais uma semana para se consumirem), tudo isto acontece no meio rural e urbano e o fazem por variadas razões: necessidade, prazer, hábito cultural transmitido de geração em geração e,..Respigadores contemporâneos indignados perante o desperdício dos excedentes da superprodução, em abono da verdade muito se poderia reaproveitar, como baixar preços em +produtos com pouca validade e baixar na fruta quando está a ficar passada e o mesmo noutros artigos e nos campos é um atentado deixar na terra toneladas de batatas, melões, tomates etc quando o Mundo com milhões de pessoas a morrer de fome. Que aflição!
Fatal despertar para esta realidade moderna em respigar breves momentos de lembranças da minha meninice com a  da  "velha da Pereira"  mulher que conheci a caminhar ao longo da estrada, descalça, vestida de avental com o laço a baloiçar pelo andar forte, lenço na cabeça e taleigo no braço, ar sisudo, dela falava o povo  que fazia rebusco " depois das vindimas apanhava os bagos e fazia uma pipa de vinho" ...Por altura das vindimas dos meus pais os mais velhos transmitiam  ensinamentos como o dever em me baixar e apanhar todos os bagos, apenas deixar os galhos, há quem lhe chame cadetes, se os pássaros não tiverem fome ainda se comem no tempo da apanha da azeitona ... Ritual bem aprendido, ainda hoje tenho dificuldade em desperdiçar  seja o que for, ao jus do ditado popular da minha avó materna Maria da Luz da Moita Redonda, Pousaflores " aproveita o que não presta, saberás o que te é preciso" já me aconteceu deixar de ser tão guardadora de coisas para em rotina de limpezas depois de tanto tempo comigo chegar o dia de as deitar para lixo, para repensar melhor e voltar a guardar, e outras vezes concretizar para dias depois sentir o que tinha deitado fora o que me fazia falta!
Na minha infância e adolescencia havia muita pobreza numa região de minifúndio, onde tudo era aproveitado, porque todos tinham animais domésticos, nada se deixava de fruta por colher nas árvores nem na terra. Ainda assim existia o rebusco sobretudo nas vindimas e na azeitona.E se pudessem apanhar nozes não as deixavam ficar no chão. Óbvio que esta tradição de respigar em grandes campos em França mostra-se outra realidade bem diferente pelas cotas de mercado em que nos vinhos os produtores só podem produzir uma cota estabelecida em anos de grande produção optam por deixar os cachos nas vinhas... que depois outros respigam.
Sinto-me indubitalmente uma respigadora ao não resistir em reaproveitar sobras de comida e praticamente tudo em casa e parte-me o coração ver constantemente na rua que os demais não sejam assim...Apanho de quando em vez  alguma coisa a que de todo não consiga resistir debalde sempre com grande pena em deixar outras valiosissimas, na verdade o meu marido assusta-se com este meu ímpeto, já eu acho que é sinonimo de liberdade, saber reconhecer valor ao que outros desprezaram, seja por não terem espaço ou cansados, no ganho de novo brilho e estima que o meu olhar agraciou.
Desde sempre objectos guardados em sótãos até ao dia que foram parar a feiras da ladra onde alguém com olho clínico lhes distinguiu o valor merecido ...«Um  Renoir comprado a cinco euros por uma Professora que gostou da moldura da pequena pintura que comprou juntamente com bonecos de plástico numa feira da ladra. Descobriu depois que tinha sido roubada do Museu de Arte de Baltimore e que valia cerca de 70 mil euros, foi devolvido ao museu.»
O quadro trazido por um emigrante de França vendido na feira da ladra em Lisboa por uma bagatela, veio-se a descobrir que tinha sido pintado sobre outro valioso de metal...
E  lembrar o tempo da pobreza das crónicas medievais da feira dos cereais  na Praça do Comércio  em que o cronista relatava " os pobres esgravatavam o chão para apanhar grãos... "

Respigar batatas
Toneladas de batatas de calibre inferior, grande ou pequeno deixadas para apodrecer, amontoam-se por entre rastos de  tratores e de arrastadeiras  em terreno macio onde resvalam deixando muita batata na terra, que os respigadores apanham para a sua subsistência. A autora encontrou batatas gémeas que chamou "coração" na ligação aos afectos!
A autora a filmar o desperdício de toneladas de batata.Num hiato de 18 anos para começarem a aparecer no mercado  baratas de calibre muito grande,a preço convidativo, ainda assim o devia ser mais barato porque as pequenas já há anos que aparecem para os assados e são bem caras.
Se alguns produtores se manifestam receosos face ao rebusco nas suas propriedades, um advogado elucida que o Código Penal Francês autoriza o respigo nos campos e nas estufas após colheita, do por ao nascer do sol, a todos os que o façam por necessidade, incluindo os que o fazem por prazer, pois este será sempre considerado uma necessidade.   
Os catadores de lixo 
Respigadores contemporâneos, os catadores que se dedicam a recuperar e a reciclar sobras e detritos nos caixotes do lixo e monos deixados na rua onde todo o abandono é considerado sem dono, logo quem se quiser dele apossar está no direito de o fazer.  Não gosto de ver gente que vasculha os monos apenas para partir em plena rua televisores e outros objectos com o fim de lhes retirar o cobre deixando ficar no chão todo o despautério de cacos e vidros...
Artista plástico russo a viver em França com objectos que apanha no lixo, sobretudo bonecas, fez estas esculturas de arte reciclada surgindo assim associada à recuperação de objectos com criatividade na escultura,  pintura (técnica mista) mas também na bricolage  na recuperação e reciclagem, integrando o domínio da descoberta e prazer do respigo, do rebusco, do consumo ou o processo criativo por todos fazerem parte da experiência nova em reinventar ocupando uma forma de preencher o vazio causado pela reforma, ou a falta dela, na sua espera por exemplo-
Respigadores da sociedade, tão distintos e tão semelhantes aos que aparecem nos quadros expostos nos museus. 
 Um relógio sem ponteiros que rebuscou numa lixeira
«Decide trazer do lixo para sua própria casa duas cadeiras e um relógio sem ponteiros o mote das mais belas metáforas do filme: as cadeiras remetem para a quietude e espera, ao contrário do relógio sem ponteiros que evoca o desejo de parar o correr do tempo, reter a memória e o envelhecimento, despistar a morte que ronda seus passos e ameaça retirá-la de cena – tanto do cinema quanto da própria vida.»
Varda brinca cria ilusão óptica ao apanhar camiões com a sua mão enquanto conduz na autoestrada...
Encanta-nos a autora Agnès Varda com um gesto tão simples e divertido através de suas mãos enrugadas como se elas próprias fossem uma lente de câmara, ao captar os camiões que passam na estrada,como se fosse um gesto de uma criança...
Por último o filme dá a noção de rebusco também aplicado em sentido figurado às coisas do espírito e da alma ao rebuscar factos, gestos, e memórias. Agnès Varda também se rebusca a si, num exercício de auto-retrato. O seu projecto tal como ela nos dá a conhecer consiste em “com uma mão filmar a outra” As memórias de uma mulher que, aos 72 anos, lê nas suas mãos enrugadas as marcas implacáveis da passagem do tempo e o anúncio inconfundível do fim, mas sem fim, em que a idade não a limita em se sentir eternamente jovem, apesar dos efeitos da velhice estes não colidem na sua necessidade de criar.

Julgo que as palavras Respigar e Rebusco tenham dado origem ao Refugo- nome que se dá nos Correios a correspondência com nome e moradas insuficientes , em espera de ser reclamada. E à palavra Restolho - nome dado ao que sobra depois de cortado o milho, os canoilos,e outros caules secos para os animais.

Reconheci-me extraordinariamente nas atitudes e no elixir da juventude em idade madura da autora !

Fontes
Filme
https://pordentrodemim.wordpress.com/2015/03/19/les-glaneurs-et-la-glaneuse/ 

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