domingo, 20 de outubro de 2019

A riqueza da grã nas Serras de Ansião em 1747

Tomei conhecimento do termo Grãa numa visita guiada aos conventos da Caparica, uma espécie de carrasco da espécie Quercus coccifera. Em miúda recordo na Costa do Escampado, em Ansião, subir o costado desde a Fonte da Costa pelo carreiro de terra vermelha ornada a cascalho branco e erva de Santa Maria. Ao cume a perder de vista para norte, a minha família tinha uma grande fazenda, hoje minha e da minha irmã, onde o meu avô paterno "Zé do Bairro" cortava os carrascos para com eles acender os fornos da sua  padaria. Por aqui ou a caminho da Ferranha, outra fazenda no Vale Cerejeira recordo de ver carvalheiros com  bugalhos com textura esponjosa em tom avermelhado, mas sobre eles nada sabia, julgava que seriam assim por ainda estarem verdes e só depois de secos é que ficavam com a cor característica castanha...
Bugalho seco de um carvalho alvarinho da Mata Municipal de Ansião
Os bugalhos também chamados galhas da espécie Quercus coccifera são o resulto  de uma picada do insecto cochonilha Kermes vermilio, conhecido também como grã-dos-tintureiros, grã-de-carrascoa, grão-escarlate e carmesim
O insecto faz um furinho no bugalho provocando uma reação de espessamento nos seus tecidos criando um espaço de casulo onde deposita os ovos para as larvas se desenvolverem parasitando a planta, alimentando-se dos nutrientes da galha ou bugalho que se desenvolvem durante o inverno, a textura interior é esponjosa e duros por fora, o insecto parasita varia de entre 6 a 8 mm, se desenvolvendo preferencialmente sobre os ramos juvenis e os pecíolos das folhas jovens desta espécie de carrasco. O insecto parasita é o produtor do corante carmesimquando a galha seca fica pronta para uso como corante para as artes e tinturaria de têxteis .
Na Caparica eram os frades em trabalho exaustivo que procediam à apanha das galhas  do carrasco para secagem e obter um pigmento carmesim ou carmim  após trituração em almofariz.

Bugalho ou galha vermelha
Foto captada no Alto da Serra ao Camporês, a 3.4.2022, de bugalhos gémeos, em Ansião
Inseto que poliniza a galha da grãa
Carrasco comum
Nomes vernáculos: carrasco, carvalho dos quermes, carrasqueiro, carrasqueira, carrasquinha, carrasco-galego, verdadeiro carrasco. 
O carrasco da família Fagaceae, nome científico-Quercus coccifera é um arbusto que surge espontâneo em Portugal, em terrenos calcários, secos, pedregosos e com menor frequência, terrenos com maior teor em sílica. O carrasco é um arbusto de folha persistente, perene e verde o ano inteiro. Pode atingir até 6 metros de altura, ramifica-se abundantemente em múltiplos ramos a partir do pé tornando-o em floresta mediterrânica impenetrável , as folhas dentadas e espinhosas. A madeira do Carrasco é semelhante à da azinheira, de boa qualidade, muito sólida, dura e pesada, devido à dimensão reduzida não tem praticamente nenhum aproveitamento, as raízes mais grossas podem ser utilizadas para a produção de carvão e para lenha. Produz um fruto (bolota) utilizado na alimentação animal, incluindo algumas aves.

Quem introduziu a grã na Europa?
Parece terem sido os Fenícios a introduzir a grã na Europa, tendo em vista novas áreas de produção, onde pudessem colher o corante necessário para a indústria têxtil, a cor vermelha era tida em grande apreço em todo o Mediterrâneo oriental. 
Também os romanos tornaram o aproveitamento da grãa em empreendimento comercial de apreciável volume em todo o império, a fim de satisfazerem o gosto pelos vermelhos vivos nas vestes cerimoniais. Os carrascos cresciam nos matagais mediterrânicos no sul da Península Ibérica e de França continental, Córsega, Itália continental, Sardenha, Creta, Turquia ocidental, Argélia e Marrocos, regiões com invernos amenos e primaveras e verões secos e quentes. O inseto parasita só os espécime fêmeas, os únicos que produzem o corante escarlate que em baixa concentração produzia cores que iam do rosa ao roxo. A colheita era feita pela manhã, sendo necessário cerca de 1 kg de  galhas ou bugalhos  frescas para produzir 10-15 g de pigmento puro. Na Idade Média era colhido no sul da França e sudeste da Península Ibérica ,a sua utilização suplantou no mundo muçulmano e no ocidente da Europa a púrpura obtida a partir do molusco que desde a  Antiguidade Clássica era a principal fonte dos tons de vermelho e escarlate.
O uso desta cochonilha na região do Mediterrâneo manteve-se inalterado ao longo de vários séculos até que após a descoberta do Novo Mundo no  século XVI permitiu a introdução dos corantes derivados da cochonilha-dos-catos, cuja concentração e poder de tingimento é bem maior. 
O custo de produção do corante a partir do quermes era muito alto, tornando este corante muito caro, o que ainda era mais oneroso quando se utilizava no tingimento de seda. O preço dependia da qualidade e abundância da colheita da cochonilha, da disponibilidade de mão-de-obra para a recolha, uma tarefa fastidiosa e lenta, e da qualidade do pigmento obtido.

Utilização da grãa de carrasco
Utilizado em tinturaria para dar a cor carmesim a tecidos valiosos, fabricados desde a antiguidade clássica em toda a Europa, principalmente na zona mediterrânica. Este tipo de corante foi também usado para tingir tecidos para a realeza europeia e norte-africana e para o papado (em panos de lã e de seda).A cidade de Montpellier era famosa no século XIV pelos seus tecidos escarlate de grande valor. O corante era também usado pelos monges copistas em iluminuras de manuscritos medievais. A sua presença foi detectada em pinturas do Neolítico na França e múmias egípcias.

A espécie Kermes vermilio 
Tem sido objeto de numerosos estudos dada a sua importância na história da cultura da Europa como fonte de pigmentos utilizados em algumas das mais marcantes obras da pintura europeia medieval e renascentista e o seu impacte económica na área da tecelagem e da tinturaria.

A grãa teve grande valor comercial no passado em Portugal e na Europa
Entrou em desuso com o carmesim importado do México durante a época colonial que era dez vezes mais rentável que a grãa europeia.

A grãa portuguesa 
Era vulgar na Arrábida e no Barrocal algarvio, com grandes populações, que permitiram a sua exploração comercial, tendo sido exportado, como matéria corante preciosa, para muitos centros têxteis europeus.
Hoje é raríssimo, não só em Portugal, sendo uma espécie em extinção, mas também noutras zonas onde antes era abundante.
Parece ter sido considerada a melhor das grãs, muito procurada no Algarve e na península de Setúbal, embora existisse, também, no Baixo Alentejo. Até ao reinado de D. Manuel, a apanha e comercialização da grã era privilégio da casa real. Este rei liberalizou, em 1499, a sua colheita e comércio, sendo a apanha autorizada num período curto, fim de Maio e início de Junho, quando a cochonilha estava na plenitude da sua capacidade tintória, repleta de substância corante, os ovos e larvas, de cor vermelha ou carmesim, retidos nas fêmeas. 
Crê-se que a última colheita em Portugal tenha ocorrido em 1912, com a exploração tecnológica já muito decadente.

Excertos a referir a importância da grãa em Portugal
Corografia , ou Memória económica , Estadista e Topográfica do Reino do Algarve por João Baptista da Silva Lopes, sócio da Academia Real das Ciências (...) No promontório de Sagres além de outros vegetais encontra-se o açafrão, a soda de um produto espantoso, a baga do zimbro  que se desfaz toda em suco e  a grã do carrasco... 
João de Barros as matas do conselho(Pombal) , assi da bolota, como as serras do carrasco da grã,  que no tempo um Inseto de vermelho muito vivo, que se cria na casca do carrasco, de que se faz a tinta grã, utilizada para tingir tecidos.
Os estudos  sobre a grã que encontrei 
O de Maria dos Anjos Ferreira a Grã-dos-tintureiros – Kermes vermilio Planchon, mostra-se deficiente sobre pólos produtivos de grã no território, a dando apenas no litoral alentejano, barrocal algarvio e Arrábida, quando também existiu forte pelo menos na Caparica, Almada,  a fonte de rendimento dos frades e nas Serras de Ansião, ainda viva a sua atividade em 1747.

Grãa nas Serras de Ansião
Graças a uma notícia nas Memórias Paroquiais de 1747 do Padre Luís Cardoso sobre a Serra de Anciam,  a tradução da minha autoria (...)A serra de Ansião não é igual, com  partes se abatem em profundos vales, e outras partes se levanta em grandes oiteiros(...) divide-se em dois braços, um dos quais forma a serra de Alvaiázere, e outro a serra da Junqueira; nesta acaba, e principia naquela, e de uma a outra são 2 léguas de distancia .Tem dentro em si algumas povoações, como são:as vilas de Ancião, donde a serra toma o nome, a do Rabaçal, Alvaiázere, Maçãs de D Maria, Aguda e Chão do Couce, não faltando a outras povoações de menos conta (...) Não obstante a sua aspereza , tem, e cria várias ervas medicinaise fora das vulgares, e sabidas, acha-se nela em abundância alecrim, e Peonia, como também Grãa de carrasco, a que nas oficinas se chama Chermes.
O excerto evidencia a riqueza da grã nas Serras de Ansião em 1747, nas oficinas se chama Chermes, o padre queria ter escrito Quermes. O que faz sentido dizer, a grã era trabalhada em oficinas para obtenção do  pigmento carmesim para ser vendido.
O padre Serra na sua notícia da serre de Ansião em 1747 (...) Cultiva-se em várias partes, semeando-lhe cevada, centeio, trigo e milho grosso; mas destes frutos abunda pouco; e o que mais frutifica é azeite, pois tem muito, e bom olivedo. Muitos carvalhos, que produzem muita bolota, pasto dos porcos que em grande quantidade se acham na terra; e é tanta que dela se utilizam muitos outros, que de fora vem aqui buscar o sustento com grosso interesse dos moradores e pela bondade dos pastos, são as carnes excelentes»

Duas riquezas que se perderam e outrora abundantes nas serras de Ansião
A grã e as varas de porcos ruivos foi activa até meados do século XX em Ansião.
O que ainda existe é a mancha de carvalho e carrasco cujas bolotas servem para javalis e outros animais selvagens e ainda para estrumar as terras.Triste é passar pelo Vale da Couda e pisar a calçada coberta de um grande manto de bolota que ninguém apanha , igual no Escampado e ,...Quando foi utilizada para se fazer pão e no mesmo a castanha,  no meu tempo a via a ser apanhada para alimento de porcos.
Um produto mediterrânico, biológico, debalde desperdiçado, sem saber se já se fizeram estudos para ser aproveitado em proveito humano e também  animal em  rações.
Os exemplares de carvalho seculares deviam ser protegidos e classificados por espécies no concelho.
Também não devem ser abatidos como constatei um exemplar de diâmetro extraordinário a caminho do Escampado de Calados.Nem sei como foi possível cortá-lo, olhando ao tamanho da serra  ...

Causas da raridade actual  da grãa ?
São desconhecidas. As alterações climáticas, a utilização prolongada do carrasco como combustível, a fragilidade das larvas neonatas e o longo período de hibernação, o parasitismo, devido a forte actividade de parasitóides, e a predação.

Curiosidade
A grã nas serras de Ansião pode estar na origem da toponímia das Gramatinhas de Santo António, hoje apenas Gramatinha, que se explica por o lugar ter nascido  no Caminho de Santiago de Compostela vindo de Ansião, Escarramoa, Barreira, Gramatinhas, onde havia uma estalagem, um dos últimos hortelãos era de Albarrol e a capela com o orago a Santo António, o patrono dos viajantes, como a do Bairro em Ansião. 

Gramatinha é uma palavra  composta por gra+ matinha = Matinhas de grã
Alertada pelo amigo João Bicho sobre a  mesma origem do topónimo Graminhal, e sim!
Uma a norte e outra a sul de Ansião.

Fontes
Maria dos Anjos Ferreira a Grã-dos-tintureiros – Kermes vermilio Planchon

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