quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Tributo à tradição dos Lenços dos Namorados e de Casamento no concelho de Ansião

Resumo publicado no Jornal Serras de Ansião em dezembro de 2022

Em 09.02.2010 abordei a temática que mereceu mais de 4.825 visualizações, na certeza veio contribuir grande influência, a motivar outros...  

A origem do uso de lenços, é muito antiga. Os romanos usavam-nos atados ao pescoço para conter o suor, costume que prevaleceu até aos meados do séc. XX, nos trabalhadores nos campos, que também em caminhada ou de bicicleta os usavam soltos, presos na nuca pelo chapéu ou boina, para não crestar o pescoço. Hoje reveem-se os lenços no folclore, nos homens vestidos de lenço vermelho com um riscado  ao pescoço, resquícios da tradição que foi viva no séc. XIX, a inícios do XX, trazido por povoadores do norte, quiçá de Guimarães, para as antigas cinco vilas no atual concelho de Ansião. Região que no passado foi privilegiada, por ter sido sulcada de vias romanas que foram medievais,  de norte para sul, após a reconquista cristã, veio a permitir que aportassem da  Galiza, Minho  e Trás os Montes. A herança de topónimos e, tradições, como os Lenços dos Namorados e de Casamento, em cor monocromática, a vermelho, de bibliografia inédita, em Ansião.

O ritual dos Lenços dos Namorados e de Casamento nasceu no Minho, as minhotas bordavam o seu enxoval; duas  camas de roupa; lençóis e fronhas e uma mortalha com monograma ; toalha grande que   servia ao médico ou ao padre, na ida à sua casa e, na morte, envolvia o corpo. Já as cores garridas do traje minhoto, das raparigas solteiras, admito recebeu influência na diáspora, do legado Al- Andaluz vindo de oriente; Rússia e  Tibete, onde ainda usam  bandeirolas nos cumes, de cores fortes  em altares aos seus deuses. Recordo em criança, nas arcas pelo entrudo irem buscar saias vermelhas e harmónias para tocar. Já o traje negro, com barras largas em veludo,  para as mulheres casadas, chegou aos nossos dias  nas  mulheres dos Ramalhais, em Abiul, bem recordo das vendedeiras de barros no mercado de Ansião, vestidas de preto, de rosto austero, com saias das costas, a jaez de casaco, ornadas a oiro, nas belas argolas nas orelhas e  cordão com medalhão ao peito.
 
Admito o séc. XVIII,  pioneiro nas artes decorativas como ao vivo uso do lenço, adorno por homens e mulheres, e nestas, foi mote manejá-lo, desde o deixar cair, baloiçar etc, para entrosar conversa  etc, de tal forma vistoso, a motivar alguma bordadeira mais imaginativa a criar um lenço igualmente emblemático, mas,  alusivo ao motejo do pedido de namoro ou de casamento. A pretexto de preterir o costume da escolha de marido imposta pelos pais, passando a  ser escolha dela, através do lenço, que bordava e ofertava ao seu eleito, o sinal de acordo era dado se ele o atasse ao pescoço, ou devolvia, se não tivesse interesse nela. 
 
Interpretar  um Lenço dos Namorados  é sentir uma panóplia de sentimentos e emoções, que vai do  amor, desejo, apreço, sinceridade, saudade, ciúme ou desgosto. Bordavam os  lenços ao sabor do que o coração lhes ditava, vistoso e chamativo pela simbologia ; orações, chaves, iniciais, pássaros, flores, etc. com versos da sabedoria popular e erros ortográficos. Naquele tempo as mulheres não sabiam ler nem escrever, limitavam-se a copiar letras e palavras. Por isso este artesanato não tem concordância ou respeito pelas regras de ortografia, onde há letras invertidas, outras que faltam ou que sobram, e ainda as indecifráveis, daí que seja necessário interpretar estes dizeres tão próprios dum tempo de iletricia.
 
Ritual que se findou nos inícios do séc. XX, mas, renasceu, qual fénix das cinzas, à volta de 47 anos, na ida às arcas à procura de espólio em cores garridas, em Vila Verde, no Minho. Sendo encontrados raros exemplares, a bordado encarnado e outros a preto. E aqui, temos que perceber que os noivos casavam entre terras vizinhas, e as noivas de Guimarães, bordavam apenas a uma só cor, vermelho . Esteve representado o bordado rico na roupa de cama e interior, na Exposição Industrial de 1884, na cidade. O preto, é considerada a indumentária do vestido da noiva do Minho.
Obordado rico, executado por senhoras vimaranenses edestinado a ornamentar principalmente roupa de cama eroupa interior, esteve presente na Exposição Industrial deGuimarães, que decorreu na cidade, em 1884
Hoje é reproduzido no Minho, um novo artesanato de  lenços de algodão, em detrimento do linho, em policromia garrida, no ponto pé de flor, mais fácil que o ponto original; ponto cruz. Cujo sucesso se estendeu aos têxteis, loiça, sapatos etc.  Sendo avivado e globalizado por altura do Dia de S. Valentim . Os lenços dos namorados representam hoje um Património cultural material e imaterial.  
Preciosidade do artesanato com vários estilos de quadras  da sabedoria popular .
Raros são os lenços que não apresentam um ou dois dizeres.
 
Alguns versos da sabedoria popular  retirados da net

“A carta que eu te escrevo
 sai-me da palma da mão 
a tinta sai dos meus olhos 
e a pena do coração

Quando um homem, 
ou mulher 
se encontra fortemente apaixonado,
 tudo neles é poesia”… 

"A carta que eu te escrevo
Sai-me da palma da mão
A tinta sai dos meus olhos
E a pena do coração."

"Escrevia-te uma carta
Se tu a soubesses ler,
Mas tu dá-la a ler a outrem,
Tudo se vem a saber."

"A carta que me escreveste
Inda não ia acabada
Faltava-le pôr no meio
Uma rosa encarnada."

"Cartas de amor são mentiras
E amores mentiras são;
Mentira foi teu amor
Que enganou meu coração.
 
Escreve-me, amor, escreve.
Lá do meio do caminho;
Se não achares papel,
Nas asas de um passarinho."

"E tan certo eu amarte
Como o lenço branco ser
Só deixarei de te amar
Cuando o lenço a cor perder"

"O meu coracao
so a ti adora
So por ti suspira/
So por ti chora"

"O teu lado satisfeita
Paco o ano uteiudia
Sotus u meu encanto
Am i nhadoce.alegria"

"(Ao teu lado satisfeita
Passo a noite e o dia
Só tu és o meu encanto
A minha doce alegria)"

"O cravo depois de sêco
Senefica amôr perdido
Ainda creira não posso
Tirar de ti osentido"

"A rosa do meu peito
A flor do meu jardim
Deicha de amar a quem Amas
Se me queres amar Amim."

"Amor Amor tu es a estrela que a
De guiar o meu sêr pois
Sem ti meu querido Anjo
eme impocivel viver"

"Para Lisboa te mandei
Um jenchinho quasi novo
Em cada ponta seu sospiro
No meio dos ais que eu morro"

"Coração por coração
Amor num troques ó meu
Olha que o meu coração
Sempre foi lial ao teu"

"Aqui tens meu o meu coração
E a chabe pró abrir
Num tenho mais que te dar
Nem tu mais que me pedir"

"Bai carta felis buando
Nas asas dum pasarinho
Cando bires o meu amor
Dále um abraço e um veijinho"

"Meu Luís bai pró mar
Eu tamen bou no bapor
Guardada no coração
Daquele qué meu amor."

"O amor dá-nos asas
Para nos fazer voar
Rir alto para o além
E para mim de amor rir tamen."

"Gosto de ti curação
Porque sim doce mel
E tu com tes medos
Partes ome curação"

"Pergunta a quem saiba ama
Qual e mais para sentir
Se amar e viver ausente
Se ver i não possuir."

"No centro deste lencinho
O teu nome está garbado
Dentro em meu coração
O teu rosto retratado."

"Coração, relogio tonto!
Tuas horas sempre são
Desejos das que hão-de vir,
Saudades das que lá vão!"

"Bai lenco da minha mao
Bai currer a freguesia
Bai dar em formações
Da minha sabeduria"

"Méu curação lial
Quem Mo qizér amar
Merserá gárndeCastigo
Quem no cizér falsiar."

"Aqui tens meu coração
E a chabe pró abrir
Num tenho mais que te dar
Nem tu mais que me pedir."

"Bai carta feliz buando
Nas asas dum passarinho
Cando bires o meu amor
Dále um abraço e um veijinho"

"Meu Manel bai pró Brasil
Eu tamen bou no bapor
Guardada no coração
Daquele qué meu amor"

Exemplares em policromia retirados da net

                            

                            
                                     
Em Ansião, nos serões do turno da meia noite do PBX, no correio velho, na década de 60, do séc. XX, ouvia à minha mãe falar de um grande e lindo lenço bordado a ponto cruz de cor creme, por uma amada do Vale Cego, que ofertou ao seu pai  José Lucas Afonso  pelo S. Bartolomeu no Pereiro, em Pousaflores. Homem bonito, louro de olhos verdes, ficou senhor do lenço. Mas, algo aconteceu para vir a celebrar em 1910, votos de casamento com a prima direita Maria da Luz Ferreira, da Mouta Redonda, levando o lenço de enxoval... cuja vida foi longa, já que a minha mãe só nasceu em 1934...Nunca falou que era um lenço de Namorados ou de Casamento, por nesse tempo já estar  perdida a tradição, nem se inquietou curiosa, sabendo que tinha sido dado por uma amada... Na mesma aldeia, recorda a minha sogra Ermelinda Coimbra, o pequeno lenço bordado a encarnado e bainhas ajur, guardado numa caixa na sala, pela sua mãe, Albertina de Jesus Serra. Num tempo de cantilheiros, que passavam pelas aldeias à procura de tesouros esquecidos, quiçá foi vendido a troco de moedas ... No concelho de Ansião, primou a cor monocromática, a realce o encarnado, em lenços e mortalhas, bordado  a ponto cruz, ao cunho do legado Al-Andaluz, a jus aos lençóis ainda nos hotéis de Marrocos.

Quando casei há  45 anos, e fui morar para Almada, frequentava um cabeleireiro no Laranjeiro, lembro  defronte do lava-cabeças  um grande Lenço dos Namorados, emoldurado, bordado em policromia, a ponto ponto pé de flor. Compra de um dia especial de S. Valentim. 
 
O Dr. Prates Miguel, ostentava no seu consultório de advocacia, em Ansião, um pequeno lenço em policromia emoldurado. Disse-me que foi comprado há anos numa viagem a Viana do Castelo. Portanto uma reprodução do novo artesanato dos Lenços dos Namorados.

O lenço oferta ao meu avô foi mote de pesquisa em mais de meio século, para saber se a tradição dos lenços dos namorados também tinha sido viva no concelho de Ansião. Questionei muitas mulheres e nada adiantei até que há anos, surgiu o convite das minhas amigas; Adelaide e Fátima, filhas do alfaiate "Ti João do sol posto" para conhecer a sua casa no Casal de S. Brás, em Ansião, onde distingui  na sala um lenço retangular, emoldurado, bordado pela mãe  para o pai, a ponto cruz,a bege escuro, com dizeres - não sei se de namoro ou de casamento.
Seguiu-se um grande hiato, até que publiquei um painel a ponto cruz da Rainha Santa Isabel. Na conversa com outra amiga Maria Luísa Cristóvão, do Casal das Sousas, quando a questionei se tinha  gostado da minha escolha, avancei que o ponto cruz  foi o ponto original dos lenços dos namorados sendo legado Al- Andaluz;do  povo muçulmano, vulgo mouros, vindo do oriente , quando noto que me fixa com cara de espanto dizendo que  julga ter um, que foi oferta de uma tia  há 52 anos, nascida em 1908... Pelo tamanho e cariz de enredo, trata-se de um rico Lenço de casamento, com mais de meio metro, perpetua testemunho de alto gabarito. Bordado em linho criado nas hortas do Nabão, cujas bainhas à mão impercetíveis, beijam versos a ponto cruz a encarnado, na tradição do bordado herdado de Guimarães, com erros ortográficos:

Aseita Este Lenso

Lipa Teu Rosto

Não Causa Desgosto

Prenda Damor

Centrado a minúsculo quadrado que encerra os corações de A e S, unidos pela chave encima a coroa ao seu amor e ao cão, fiel amigo. Cantos ornados a rosetas várias a crochet com remate a picot de meias luas. 

No livro O Ouro dos Corcundas, oferta do amigo, Henrique Caseiro, com raízes na freguesia de Torre de Vale Todos, a pretexto de outro tema, coligi a venda dos lenços na feira do Avelar. Por volta de 1830, Tomázia, prostituta na taberna do Pasquino, na Venda do Negro, acordou encontro com Vicente no terreiro do sobreiro no Avelar (…) Ela foi rezar, ele foi à feira à procura da antiga senhora que lhe vendera um lenço dos namorados; desejava comprar outro, como forma de revalidarem os seus votos e os seus desejos. À tal senhora não a encontrou, disseram-lhe que já tinha morrido, mas acabou por comprar um lenço a outra vendedeira (…) Tomázia saiu da capela da Senhora da Guia e Vicente segurou-lhe numa das mãos: vem comigo, preciso de te dizer uma coisa. Seguiram na direção da escadaria do velho forno do Avelar. Sentaram-se – Vicente Maria Sarmento da Bufarda de Chão de Couce, pergunta-lhe – queres casar comigo? Sim, e depois fugimos para os EUA

De onde viriam as vendedeiras e, qual o matiz dos seus lenços? Avance quem souber!

A valorizar a vinda anual, de Guimarães de vendedores de couros para os sapateiros na feira franca da Constantina, cuja tradição foi acrescida por esta via como dos que cá se fixaram, nascendo o artesanato.

Ensejo que o digno lenço venha um dia a engrandecer o futuro Museu Municipal! Como auspício à discussão da vereação da cultura em 2023, ao arranque certificado, dos lavores. 

Ainda mote alegórico ao carro da Vila de Ansião, ao sabor da poesia popular, entre outras; a minha mãe e a “Maria do brasileiro” de Lisboinha.

O meu exemplar

Fujo da policromia garrida dos Lenços dos Namorados.Demorei anos para adquirir um lenço, em linho fino, com bainha ajur , pese colorido, é mais suave.

Uma mortalha em algodão com monograma e bordado a ponto cruz a encarnado

Bordado de Guimarães

Artesanato alusivo aos lenços dos namorados com sucesso nos têxteis 
 
Tomei a liberdade de questionar o amigo Dr. Paulo Alcobia Neves de Ferreira do Zêzere, sobre se esta tradição se viveu na sua terra
Quanto à tradição dos lenços dos namorados diria que a mesma se popularizou em vários pontos do país. Na minha casa de Ferreira existiam dois ou três exemplares bordados creio que pela minha avó ainda que a minhas bisavó e trisavó tivessem conhecimentos de costura. Não sei precisar e não sei do paradeiro dos mesmos pois não me calharam em partilhas. Ainda assim não creio que se possa falar numa tradição local mas antes de iniciativas pessoais mas é tema que carece de estudo aprofundado.
 
Perduram  no tempo memórias  de paródias e ladainhas com enredo vivido entre a minha avó Maria da Luz da Mouta Redonda e a sua comadre Rosa Marques , avó do meu marido e outras com a minha mãe. Algumas foram mote de as bordar  ao jeito dos Lenços dos Namorados 
Não me cuidei no ponto em alusão ao preceito da tradição...

"Ó afilhada Rosa, centa i’nha mensa, ceia mais eu, oremos as duas Padre-nosso e Avé maria, benza a nós mais um bom dia, benza Deus, Amén…"
"
N’ho madrinha, u mê cão morreo, morreo…
Matastese-u…!"

N’ ho madrinha eu já lhe digo nã gosto qui falem no mêu nome, uvi prá i umas lérias… 
Atão não gostas que falem do tê nome e tu falas no dos outros..."

Ladainha entre a minha avó e a minha mãe

"Ó i’nha filha pouca sorte a tua, arranjaste um home filho má piçalho, um pernas aranhão de mina, não tem inducação nenhuma"

"Ó mãe se eu viesse do estrangeiro e aparecesse com as minhas meninas, você tirava-as pela pinta? 
Ai, não, tu eras muito branquinha…"

A cortina comprada na feira da ladra, que bordei com uma ladainha

"I’nha madrinha olhe lá o toque da corneta no Fojo, trará notícias de Insião? 
Não, os belozes calharam mal no natal e, antes que o pernas aranhão de mina matirasse com a sertã, abalei de cabanejos abarrotar de galinhas, logo ao alto de Lusboinha  uma me fugiu às alminhas e as enfeirei na feira do Ovelale,"
                 
Como bordei esta Paródia em estoupa, que é muito difícil

Oh mãe o pelaralho veio cá pôr os gatos nos alguidares?
O filho da puta veio, paguei-lhe vinte cinco tostões...
Á  pois ! E o cu cheio de vinho.
Não Dina, hoje o cu foi mal cheio
Tinha cá pouco para lhe dar!
                  

Azulejo alusivo aos Lenços dos Namorados  dos CTT em 2003
 

Cabaços no restaurante Lagoa
Arte dos lenços dos namorados retratada em velhas talhas de retalhar azeitonas.


Votos de gratidão e Boas Festas ao Jornal Serras de Ansião e seus Leitores!

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