segunda-feira, 4 de março de 2013

Mouta Redonda estórias dos meus avós maternos e vizinhos










Os meus avós maternos José Lucas e Maria da Luz Ferreira viveram na uedonda na freguesia de Pousaflores no concelho de Ansião.

                          
Igreja da Vidigueira no casamento filha primogénita . A minha Titi, nascida em 1911, que o pai quis que estudasse em Coimbra, tirou o 5º ano, aqui elegante vestida de tailleur,chapéu e mala de mão, .
No dia do meu batizado a minha avó com a minha mãe e uma prima do meu pai em Ansião
Atropelam-se em fúria ao ouvido relatos do passado da vida dos meus avós que me foram contados vezes sem conta pela minha mãe nos serões do turno da meia-noite no Correio velho -, tempos de inverno ao sabor do farnel aviado de casa ao sabor da quentura da braseira ateada graças às pratas dos maços de cigarros até que desfaleciam em cinza, qual castelo de cartas...ao bater das doze badaladas do relógio da Reguladora dava o mote de ir para casa. 
O meu avô materno homem nascido na aldeia de Lisboinha,- topónimo antigo de 1514, então chamada "Aldeia de Lisboa a pequena" quis o tempo que se fidelizasse em Lisboinha, a minha avó Maria da Luz pronunciava "Lusboinha" pertence à freguesia de Pousaflores, no concelho de Ansião, curiosamente também tem o seu Rossio no largo da capela e fontanário...o padrinho deu-lhe a graça no batismo o nome de José -, igual ao orago e padroeiro da capela da aldeia que o viu nascer -, filho de gente muito pobre com um rancho de filhos de apelido Afonso Lucas . 
A minha avó recebeu o nome de Maria da Luz Ferreira nascida na quelha do Vale na aldeia da Mouta Redonda, no seio de uma família de 3 irmãos. Analfabeta, tinha bom coração, muito amiga de obsequiar ajudava todos que a procuravam -, matou a fome a foragidos e pedintes, tantas almas esfomeadas abrigou no palheiro onde os criados dormiam, num tempo de pobreza. Corria longe o seu nome de pessoa de bem  de matar a fome sem olhar a quem, no jeito popular se falava dela " uma mãos largas não sabia dizer…não", digo eu mulher de muita personalidade!
Custava-lhe ver o marido "enganar, passar a perna no freguês" - a minha mãe lembra-se de a ouvir chamar a atenção " atão Zé enganaste a pobre mulher"
Quelha do Vale
Onde moraram, a casa já não existe, era do lado esquerdo a seguir à oliveira, na frente é o ribeiro que desce da Nexebra com as chuvas.

Corria o ano de instauração da República o mesmo do enlace dos meus avós maternos,- muito pobrezinho como era apanágio ao tempo a míngua de oferendas… prato falante de faiança Coimbrã " Viva os Noivos " com queijos do Rabaçal; bacia com chouriças e morcelas; duas rosquilhas de espigas de milho; meia saca de trigo; uma carroça e uma mula.
Onde iria morar o jovem casal Lucas? Por haver parca escolha o jeito foi fazê-la ao lado do casebre pobre onde a minha avó Maria da Luz tinha nascido no Vale na Moita Redonda, aproveitaram o declive do terreno onde fizeram uma cave com frente para o ribeiro nela instalaram uma taberna, mercearia e venda de panos, no 1º andar a casa de habitação. Aqui nasceu a minha mãe num lindo dia de verão em 1934.
A casa  dos meus avós com as  duas janela
Boas lembranças ainda vivas na minha memória da casa dos avós por se destacar na aldeia apesar de simples -, desse jeito sempre a admirei. Castiça ao seu tempo por ser grande de três entradas. Do lado do quintal era alpendrada em chão em terra, no pilar de madeira preso o cano de plástico ligado à mina da Cavada para abastecimento de água. A cozinha apesar de pequena tinha a sorte do janelo virado ao sol poente, sob este havia a pia de pedra de barro vermelho de pasta mole muito caraterística na região -, a serra da Ovelha de predominância calcária acaba estrategicamente no sopé a nascente para nascer uma língua estreita de 3 a 4 km onde predomina um barro grosso muito escuro desde Lisboinha d'Além até ao Portelinho nas Lajes, a partir daqui irrompe em fúria o xisto.
A chaminé altaneira a última a ser derrubada por uma máquina de lagartas...
Construída pelo tio António do Vale, um grande pedreiro e mestre de obras.
Na praça junto da igreja no Avelar corria o mercado ao ar livre ao domingo, a minha avó Maria da Luz tinha o hábito bondoso de mandar um pão alvo, à sogra velhota e cega, no tempo a fome grassava-, debalde a mulher que fazia de correio para Lisboinha, servia-se da enfermidade da pobre velhota num tempo de extrema pobreza …A pobre e cega sogra quando via a minha avó dizia-lhe " Oh Luz, tem cuidado olha que a mulher por quem mandas o pão entrega-me a côdea armada, comendo o miolo, julga que além de cega sou lêrda"...


Peixeiro começou por ser o ofício do meu avô -, deslocava-se na sua carroça à Leirosa para comprar canastras de sardinha que encomendava no telégrafo em Pombal. O que contava sobre o mar despertou na minha avó e na sua comadre Rosa da Quelha -, avó do meu marido, um interesse fora do comum em ajustar um dia para com ele irem nessa viagem. Maravilhadas ficariam a contemplar as ondas altivas de espuma branca, a partir daí passaram anos a ir a banhos.
A minha avó atiçava o meu avô Zé Lucas com ditos e mexericos infernizando-o com as suas irmãs de Lisboinha ..."pois, pois -, elas deixam as couves e os feijões só para comerem peixe" por ser tempo de fartura, que de fome tinha sido e muita !
As fegas ou aceifas
O meu avô ganhava mais no verão como capataz na safra das ceifas em herdades nas imediações do Maranhão, Benavila e Avis. Reunido o rancho de homens contratados que a ele acudiam na petição de chapéu estendido, abnegados para receber a bênção da escolha - tanta era a miséria naquele tempo. No dia de partida ajuntavam-se de cabazes e cestões de verga ou sacos de junco aviados com a trouxa e o farnel para a viagem. No Alentejo o meu avô só contratava o pessoal com jorna a "seco" (o comer era por conta de cada um, ganhavam mais). Trabalhavam na herdade de sol a sol de foices nas mãos a cortar searas de trigo -, três leiras ou margens para os homens, duas para as mulheres ditadas pelo "manajeiro" não bastava o calor tórrido e a pouca água, havia alturas que um deles - o picanço -, homem desembaraçado, furão ceifeiro, obrigava o rancho a levar a heito a ceifa sem leiras atrasadas para maior produção e corte direito da seara. Só os homens atavam os fardos.
Mais tarde o meu tio Carlos Lucas também começou a levar gente para as ceifas na jorna de "comer"- o cozinheiro tinha de ser homem jeitoso com púcaros e panelas de barro -, alcunha "coca" que deles se ocupava nas manhãs a fazer o almoço que os patrões no tempo serviam: gaspacho, açorda com sabor a alho, sopa de beldroegas ou couves migadas porque as havia à beira do Maranhão.
O "coca" de tarde não escapava à ceifa de três margens de seara. No final das "fegas ou das aceifas" assim era uso as gentes da nossa terra chamarem à ceifa regressavam esfalfados a casa -, mas contentes na algibeira falsa da forra do casaco vinham guardadas as notas - muitos por não saber ler nem escrever era uso no tempo se atribuir à nota de 100 escudos a bitola alta de qualquer acordo ou negócio, por exemplo se tinha a receber um conto de réis -, eram 10 notas. Uma boa jorna dava para suprir o inverno, comprar uma jeira de terra, um burro -, alguns deles no mesmo ano faziam duas safras, também iam ao Ribatejo à apanha da uva e da azeitona.Presente irrecusável o negócio do Alentejo… Há muito que o padrinho do meu avô Zé Lucas de Lisboinha por estar velho e cansado lhe ofereceu o legado do labuto de paneiro pelo Alentejo na senda: Benavila, Avis, Santo António de Alcônrrego, Casa Branca, Sousel, Cano, Ervedal…
Filhos ilustres de Lisboinha
O da direita é primo da minha mãe, celebrou o meu batizado em Ansião
Na loja da casa na Mouta Redonda também se vendia ao tempo 2$50 de chita da tabela, riscado de Santo Tirso, sarjado, flanela, saragoça, fioco, casteleta xadrez, cotim...nas prateleiras do armário em portadas de vidro havia fardos de muita fazenda, por altura das festas podiam também albergar: alpaca; armur; astracã; baeta; burel; casimira; crepe da China; gorgorina: orgadim; seda; tobralco e serrubeco, já na prateleira do cimo até ao teto havia cobertores de papa da Guarda, Vouzela e finos das fábricas do Rio Ave e do Avelar. Compras feitas nos armazéns junto ao Hotel Astória em Coimbra. Ao tempo o meu avô comprava a mercadoria a fiado, só depois de vendida é que a pagava, - outros tempos. Contava a minha mãe que a sua carteira atulhada com um grande monte de notas presas por um elástico…
A minha mãe fez por duas vezes com o pai essa viagem, logo pela fresca rumavam sentados na carroça guiados pelo seu fiel macho até Chão de Couce, quedavam-se ao carvalho junto ao fontanário onde deixavam no chão um fardo de palha -, em cima da hora apanhavam a carreira do Pereira Marques.

Coimbra




Apeados na cidade iam na direção aos armazéns Lousada e a outro na Praça Velha fazer as compras, os empregados vestidos de batas cinzentas carregavam os fardos de fazenda que transportavam para a camioneta. Conta a minha mãe que se lembra de ver os vidros das janelas dos prédios com papéis colados com riscas sobre o amarelo no tempo da segunda guerra, - sem nunca perceber tal significado. Faziam outras compras, sapatos, chapéus, óculos, guloseimas. Um dia memorável passado na cidade dos doutores,- de regresso achavam-se no mesmo sítio onde de manhã tinham saído, descarregavam a mercadoria da camioneta para a carroça, quando chovia deixavam a carga no barracão que tinham à beira da estrada no Marco, a pensar nas vezes que a carroça descarrilou no ribeiro e a fazenda se molhou "um Deus que nos acuda" diziam no tempo as mulheres. Mais tarde o barracão foi garagem do Chevrolet guiado pelo tio Alberto de carta tirada em Alvaiázere, nele foram a Fátima em peregrinação, também a Avis conhecer a casa e quinta alugada em Santo António de Alcônrrego.
A viagem sazonal na rota de paneiro…
Casa da minha filha com a lancheira minha oferta
Acontecia em dia marcado duas vezes em cada ano a caminho do Alentejo. Enquanto o meu avô aparelhava as bestas, - um macho e uma mula no átrio do palheiro onde o Ti "João do Oiteiro" tirava o estrume. Amuados estavam os irmãos da minha mãe - Carlos e Alberto – novitos vestidos de fatiota de serrubeco cinzento com riscas vermelhas sob o comprido e chapéu na cabeça - não queriam ir com o pai aprender a arte de tendeiro pelos montes alentejanos – nisto a minha avó tratava do farnel para a viagem que levavam nas marmitas de lata ovais, bem acondicionado o bom bacalhau adoçado em capa de ovo e farinha; frango na púcara e, ainda sardinhas com molho de escabeche. Do Alentejo o meu avô trazia a carroça cheia de belo torrão de Alicante, paio, presunto, queijos, azeite e pão que aguentava sete dias. Nesse permeio, - semanalmente não passava sem ir às segundas-feiras ao mercado do "Cabaço" trazia fruta da época que a minha avó distribuía pelos vizinhos - um dia a Ti Joaquina tecedeira disse-lhe "oh comadre Luz, vossemecê tem alguma quinta no Cabaço?" A subir a Quelha do Vale ia o meu avô em modo de gozo respondeu à pobre velha - " tem, tem, ameixoeiras, cerejeiras…".
A minha mãe em cima do mocho com o cabelo cortado à garçone, pela calçada atrás só podia ter siso em Pousaflores, ladeada da irmã Clotilde e outras vizinhas.
Em dia de um regresso da temporada do Alentejo a minha mãe fazia espera por eles de braços cruzados ao ribeiro na esquina da casa da Ti Joaquina , vestia saita curtita às pregas castanho liso e blusita de popelina às riscas com gravata castanha a condizer com a saia, cuecas à mostra e, cabelo cortado à "garçonne" pela mão do Manel da Serrada da Mata -, acredito mais ansiosa esperava mais pelas novidades vindas do Alentejo do que saudades deles…há dois anos presenteei a minha mãe em dia de aniversário com a rota que o seu pai fazia pelo Alentejo, a minha irmã pagou o alojamento na pousada em Alter do Chão.
Com a minha mãe em Nisa a 27 de julho 2011 
Onde a emoção tomou conta de nós a matar lembranças de antanho
Excursão de Pousaflores ao Santuário do Cristo Rei 
Ao tempo para a sua construção correu um peditório a nível nacional, muitas paróquias fizeram subscrições para angariar dinheiro. Pousaflores não foi exceção. Para a inauguração em 1962 fez-se uma excursão com os paroquianos, a minha avó Maria da Luz fez parte da comitiva com a comadre "Rosa da quelha". Ficaram maravilhadas com o início da construção da ponte Salazar sobre o Tejo.No regresso breve paragem na Nazaré junto da praia puxa pelo taleigo e tira a bucha para enganar a barriga, naquilo abeira-se dela um rapazito, amiga de obsequiar tira outra bucha e presenteia o rapaz, mal se distrai a ver as ondas a bater na areia dá conta que ele a engoliu enquanto o "diabo esfregou um olho" pergunta-lhe "atão mê menino não gostaste da bucha qui te dei?" retorquiu o rapaz "oh mulher eu cá comia sete…" grande era a fome do petiz numa terra de peixe com mulheres de sete saias!
Garagem do meu avô sediada ao MARCO
Na estrema da freguesia de Pousaflores com Chão de Couce. O primeiro automóvel na aldeia de Moita Redonda, o caminho pedregoso e com chuva um dia a carroça resvalou e os fardos da fazenda caíram ao ribeiro. O prejuízo foi grande.Por isso comprou o carro para o filho Alberto guiar. A garagem servia também para guardar a mercadoria, e até a azeitona antes de ir para o lagar.
Outras boas lembranças da Moita Redonda… 
Invadem o meu estar as faldas da Nexebra ao vale, nas mini férias de natal. Das noites à lareira a ouvir o crepitar das carcóvias dos pinheiros e galhos dos eucaliptos, sentadas em tripés baixos na frente do lume onde se comia a janta num prato grande com um galo no fundo ou numa bacia, assente na tripeça, e em punho garfos de ferro com cabo de madeira. A enfusa sem asa com o vinho de sabor esquisito "coveiro", e para adoçar a boca e umas passitas de figo pingo mel e nozes quando as havia.
                    
Loiças de antigamente de Coimbra, as grosseiras ditas"ratinho" e de faiança , jarro de vinho alusivo à tricana de Coimbra com xaile feito nas fábricas do Avelar
Na hora de deitar a avó levava a candeia acesa para iluminar os seus Santinhos numa de fazer companhia nas rezas intermináveis noite adentro - deitadas na camita de ferro, aquecidas entre mantas de trapos, e cobertores de papa às riscas da Guarda o pavio da candeia bêbado de azeite altivo -, pronuncio no seu dizer "não haviam trevas na casa"… fiel companheira na reza do terço -, aquela avó Maria da Luz conhecia os Santos todos, rezas e mais rezas, lengalengas: ao Anjo da Guarda, Almas do Purgatório… súplicas e preces por todos os que já tinham partido, "fulano que foi das Hortas, Pai Nosso e Ave-maria"…"sicrano que foi da Mouta Redonda de Baixo, alumiai-o Nosso Senhor Jesus Cristo e todos os Santos" horas a fio até dar volta ao rol de falecidos na família, amigos, e conhecidos, às tantas bocejava com sonito, cansada mas educada levantava a voz, dizia-lhe "vozinha rezámos por esse e por aquele e mais o tal e, ainda -, já rezámos por eles todinhos" olhava para mim surpresa fazendo fé no meu falar - no repente digo eu - acharia que estava muito dedicada às suas rezas, será que estaria (?) o pior a sua beatice, queria que eu aprendesse todas as ladainhas e rezas que sabia.
A avó fazia sabão…
Boas lembranças de a ver ir ao fundo da talha tirar uma remeia (no seu falar), no meu uma malga cheia de borra de azeite +- 1 Kg que derretia ao lume na panela de ferro e noutra punha +- 2,5 Lt de água a ferver com 6 malgas pequenas +- 2,5 Kg de cinza branca de vides ou de oliveira -, no seu dizer a melhor sem carvões que depois de assente coava a água que juntava com as borras de azeite quentes.Misturava tudo bem com 250 Gr de de soda caústica, pozinhos que comprava na farmácia e mexia com um pau até se despegar do fundo que depois o queimava.O sabão ficava com aspeto de uma bola que na tripeça, a mesa de três pés o moldava numa lata velha, aq sua barra de sabão. No dia seguinte tirava-a da lata e punha-a ao sol a secar. Ficava assim de um dia para o outro.Usava este sabão para fazer a barrela no alguidar para a roupa de linho que naquele tempo se encardi muito, depois corava sobre a relva ao sol para ser novamente enxaguada na água corrente do ribeiro. Seca ao sol na ribanceira do leirão, ficava branquinha. Sim, porque naquele tempo as mulheres eram muito asseadas com a roupa da casa. Dizia ela que este sabão não dava para lavar a roupa de lã nem preta, nesta via-a misturar na água ao enxaguar vinagre, para não perder a cor.A cinza tem um alto poder branqueador.Para clarear os lençóis e as toalhas as punha de molho em barrela ensaboadas com   cinzas, no dia seguinte lavadas normalmente .
Lembranças de ver os ofícios irem a casa do freguês
Fosse a costureira que levava a cabeça da máquina no alforge do burro ou numa cesta à cabeça e ficava na casa do freguês até acabar as encomendas.


Formas
Ti Medeiros era sapateiro
Uma história passada na Moita Redonda com um aprendiz de sapateiro, os primeiros sapatos fê-los para a avó Joaquina - "velha escarnienta" diz à filha que era a mãe do rapaz com tom irónico "oh Maria, os sapatitos que o teu filho me fez ficaram apertaditos, apertaditos…", indignada a filha a ouvir tal funesto reparo da mãe a dizer mal da obra do filho, responde-lhe "apertaditos? Sabe a minha mãe quem lhe fazia uns sapatos mesmo à medida do seu pé -, o ferrador da Mó…" a pobre velha sonsa, pergunta à avó do meu marido " oh Rosa a minha Maria diz que há um ferrador na Mó que faz sapatos mesmo à medida do meu pé, como uma luva" responde-lhe a Rosa" oh mulher, a sua Maria quis atenta-la, atão o ferrador põe ferraduras mas é nos burros…" 
A Ti Joaquina tecedeira, fazia mantas de trapos, tecia o linho e a estopa, a seguir à sua casita havia uma casa de duas janelas e uma porta com escada de pedra e varandim em madeira da Ti Maria que vivia com a filha Augusta, orgulhosa dizia-lhe em relação aos rapazes, "Augusta minha filha, tu és uma broa inteira". Naquele tempo de pobreza - a filha bordava, quem havia de dizer ostentavam na frontaria o emblema da companhia de seguros - Mundial Confiança. Escarnientos e mordazes em atazanar os vizinhos só pensavam no mal, os irmãos da minha mãe - Carlos e o Alberto - um dia resolvem pregar-lhes um susto, fizeram uma fogueira no leirão atrás da sua casa, naquilo ouviram a Ti Maria dizer para a filha "Deus nos acuda Augusta que lá se vai a nossa manica"… (ao que parece a casa para elas não tinha interesse, apesar de estar segura, só a manica aos olhos da velha mulher, o sustento delas…).

Naquele tempo o barbeiro que além de cortar o cabelo também arrancava dentes. 

A morte da avó Maria da Luz …Ocorreu aos 79 anos de doença cancerosa - quis o destino que o quadro "Anúncio da Morte" saísse em sortes à minha mãe na herança -, no trajeto da aldeia até à nossa casa idealizei o seu fim, nem chegou a entrar em casa, todos os pertences ficaram no patim à porta da cozinha para a minha mãe fazer escolhas, logo o tirei do monte, sem que se apercebesse destruí-o com os pés, partido em mil bocadinhos enterrados junto ao pé da oliveira milenar no quintal juntamente com o facalhão de matar os porcos - não fosse o meu pai usa-lo num dia de maus instintos…no terreiro da casa jaz hoje um monte imensurável de escombros, mas para mim perduram as boas Memórias! 
Deitadas numa cama igualzinha a esta... Horror sentia eu com o quadro na parede, encenação macabra do "Anúncio da Morte"
Moribundo prostrado em cama de ferro agonizava, sobre ele o Diabo com cornos disfarçado de morcego voava para o levar envolto nas grandes asas de morcego vermelhas e o tridente numa das mãos...sentia medo medonho ao olhar para aquele quadro, um medo sem igual.
Saudades de espaços e pessoas da Mouta Redonda
No verão regalava-me a abafar calores no ribeiro em queda abrupta das faldas da Nexebra junto de umas figueiras enfezadas que ladeavam o pequeno lago com açude em pedras alvas onde mulheres lavavam a roupa - lajes carregadas no dorso do burro do Ti Mateus da serra Branca, da Ovelha ou Anjo da Guarda, porque aqui na represa - aqui neste lugar - precisamente, irrompe o xisto… Adorava brincar com ramitos de loureiro a vergastar ondas teimosas que caiam e molhavam o meu vestido e os pezitos na grande a pia de pedra onde o macho e a mula bebiam água na entrada do carreiro da casa dos avós.
Regalava-me com as colmeias que eram cortiços em fila no rebordo do muro de xisto da eira feitos em cortiça - a avó já não tratava delas, ainda assim as abelhas andavam a sarilhar à sua roda, eu delas fugia antes que alguma me desse uma ferroada, quando acontecia -, vinagre e faca em cima com força até sair o ferrão. A minha mãe trouxe um cortiço novo da Moita Redonda para nossa casa, durante anos foi o nosso cesto da roupa suja, viveu anos atrás da porta da casa de banho até ser substituído por um novo em verga moderno…hoje, continua a viver na casa rural a perpetuar tempos idos. De manhã gostava de calcorrear os leirões abaixo e acima ao lado de levadas de água que vinham das minas para o regadio das sementeiras - ouvir o chilrear dos passarinhos, sentir a frescura e os cheiros no ar. 

Bom recordar a casa da Ti "Rosa da quelha"… gostava de me sentar na arca da sala com as pernitas a cercilhar enquanto as mulheres sentadas nas cadeiras na roda da mesa rezavam o terço depois de alumiada com azeite a Nossa Senhora de Fátima na sombra o relógio assente na mísula de madeira feita pelo filho - o meu sogro Fernando Coimbra, o malandro não se fazia rogado a interromper o ritual das "beatas" ao dar as badaladas -, mulheres devotas da doutrina da igreja e dos seus mandamentos, eu ria baixinho, este culto do pedido do Terço todos os Santos dias na hora da sesta, há vez, ora em casa da minha avó, ora na casa da sua comadre "Rosa da quelha". 

Boas lembranças também da casa Maria Medeiros, do marido Silvério e do filho Carlos a morar por Lisboa, um dia apareceram com o seu carro novo. O Silvério de carta recente numa idade madura, inexperiente para fazer manobras, a tentar pô-lo na garagem por baixo da casa, num instante o carro resvala na manobra de marcha atrás e se enfia no ribeiro, só de lá saiu a força de braços, dos meus também. 

Da casa do Ti António Veríssimo e da mulher Albertina no Fojo, tantas vezes passei à sua porta, andava ela de volta da roupa no poço do Carvalhal ou das galinhas na Cabreira, o Ti António de volta do "burro" a cortar madeira ou no quintal. Os filhos: Ermelinda, José, Acácio e João, são dum tempo em que pais e filhos abeirados na roda do lume comiam da bacia as couves aferventadas com feijões, no cimo uma sardinha para três ou um bocadito de bacalhau. 

Boas recordações do Ti Bernardino - homem solteirão, simpático a sua casita muito velha junto à estrada. Do lado do quintal ao entrar na casa a caminho da cozinha tinha uma arca a cair de velha, nela guardava pêras amarelas com pintas castanhas, a verdadeira pêra Rocha, e tomates - os seus tesouros - quando o visitava abria a arca de mão trémula, do fundo tirava uma pêra ou um tomate como se fosse a maior riqueza para me dar - mas era tal a bondade em dar com um sorriso maroto e linguarejar imperceptível pela falta de dentes. 

Falar do Ti Francisco - anos depois de ter morrido a minha mãe alcunhou " de viver no condomínio fechado" por a sua casa estar inserida num conjunto de outras na entrada da aldeia, em detrimento das demais dispersas. Durante anos aos sábados aproveitava vir à feira do gado, apanhava boleia com o João ou o irmão "Zé Mau das Hortas ",- aparecia na nossa casa de saco de serapilheira às costas com "peros pau" que apanhava no início do outono no talho do Cabo da Fazenda pertença da minha mãe. 

Não esqueço de ouvir contar a muita gente sobre o "milagre" - uma coroa de borboletas que se juntou em cima do caixão da Ti Brízida" - mulher devota, muito religiosa, no dizer do povo uma Santa, a minha bisavó materna.

Saudades de ir até Chão de Couce pelo atalho das "Calhes" no tempo as pessoas para trazer a água das minas das costeiras da Nexebra, era uso calhas em pinho pelas costeiras para encher um grande poço à beira do caminho na direção do Furadouro. 

Do Ti João do Portelinho, homem emigrado nas Américas, de onde veio abonado, regressou em finais de 30 ou inicio de 40, a minha mãe nascida em 34, lembra-se dele, trouxe uma grafonola onde punha música que se ouvia ao Vale, possivelmente os relógios que a maioria dos aldeões tinham em casa e cheguei a conhecer alguns, foram trazidos por si, talvez uns dez (?), que comprou em 2ª mão por altura da recessão nos EUA em 29; o meu avô comprou dois, o avô do meu marido outro, o Ti Bernardino, a Ti Rosa da Quelha e aqui já vão cinco.  
Relógio da Ti Rosa da quelha
Era um tempo de fome e pobreza, homem viúvo, endinheirado e bonito, a minha mãe lembra-se de virem a casa dele "mulheres a oferecer-se" para em troca receber uma maquia de farinha ou dinheiro, até que foi atrás da serra (Anjo da Guarda) buscar uma mulher "daquelas já passadas" para casar de quem teve uma filha que conheci, a Benvinda. Tinha em casa também um grande alambique onde se fazia a aguardente.

Saudades de mais gente do Augustito segundo se fez constar roubava o vinho da adega da avó Rosa do meu marido...da Josefina da Horta e,.. 

Recordo a minha avó Luz de só ter um dente - , gostava de comer papas de milho e sopas de pão duro com queijo de mistura meia cura partido aos bocadinhos amolecido na quentura da cevada. Difícil a minha mãe suportar que eu a imitasse - confesso que ainda hoje gosto duma malga de sopas de café com "olhas" do queijo do Rabaçal seco em azeite, igualzinho às sopas do café da avó.
Pequenito era o seu quintal enviesado na ribanceira do leirão, na quina a oliveira, no seu terreiro estendia-se o talho do jardim semeado de trevo com flores pálidas em rosa na frente da eira - feijocas de flor de cor carmesim salpicadas de branco e duas filas de couves-galegas, no meio o carreiro a caminho do Fojo, no rebordo da eira grande arbusto perene de flores brancas "as Lágrimas", açucenas brancas, outras debruadas a rosa, junto do curral dos coelhos a roseira de silvão em tons de cerise raiada de branco.
A seca tem dizimado o jardim
Alegria sentia eu ao ouvir no raiar do sol a corneta do carteiro ao Fojo, o som subia à crista dos outeiros, descia ao Vale suave - apesar de forte - em meio tempo ouvia a comadre Rosa em gritaria "In’ha madrinha daqui da porta parece-me ver o carteiro a subir a quelha " sinal de notícias de Angola, da Titi ou da minha mãe que abusava nas férias no envio de mimos que a avó guardava na pequena arca do seu quarto. À solapa gostava de espreitar e surripiar qualquer coisinha até ao dia que fui apanhada, ouvi ralhos e não escapei do castigo…inverno, a noite caia cedo, obrigou-me a ir ao casebre buscar lenha para o lume. Assustada pelo alto rebate de xisto da porta abaixo do nível da casa naquela hora parecia maior, ou eram as minhas pernitas a tremer que não o conseguiam subir, na soleira da porta só enxergava uma escuridão e o barulho do vento a bailar nos altos ramos dos eucaliptos. Corajosa, enchi o peito de ar, fui a rezar naquela de partilhar ajuda orava "Jesus vai comigo, eu vou com Jesus" por apalpação trouxe gravetos de pinho!

Continuar a falar de outros relógios…
Interessante num tempo de pobreza a maioria dos homens da aldeia de Moita Redonda já possuía um relógio de bolso com corrente em prata e ponteiros em oiro como o do avô do meu marido - António Veríssimo uma herança que nos contemplou – outros tinham maiores – "relógio cebola "como o do tio Bernardino que ofertou ao José Manuel Ribeiro meu cunhado, apesar de estragado. Estes relógios só os usavam ao domingo ou em dias especiais.Para trabalhar fora de portas orientavam-se pela bússola com relógio de sol.
Caixinha de madeira, encontrei a do avô do meu marido Veríssimo no ribeiro deitada fora pela minha sogra depois de este ter falecido. Agora naquele tempo possuir um relógio de sala, era um luxo. Tinha passado pela aldeia um homem que os vendia em segunda mão no início da década de 1930 trazidos da América após a recessão de 29, em que as pessoas se desfizeram deles para sobreviver.
1ª foto na Serra Janeanes, Sicó a 2ª em 2012 no aniversário da minha mãe no hotel Miramar
As semelhanças entre a minha mãe e esta senhora são muitas  a revelar ascendência de judeus asquenazes... A minha mãe herdou a cor dos olhos verdes e os cabelos loiros do pai.

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