quinta-feira, 7 de março de 2013

A televisão entrou em minha casa em 1960




Por terras doadas a D. Maria Pais Ribeiro-, viria a ficar na história conhecida como a Ribeirinha a amante favorita do rei D.Sancho I... que quase a fez rainha. 
Mulher bela de cariz inspirador a paixões desencadeadas em corpinho miúdo tais as terríveis faculdades de sedução e de perfídia com que se insinuava...o que dela deixaram escrito! 
O rei muito ciumento, em idade avançada lega-lhe Vila do Conde e outras terras como Maçãs de D. Maria no concelho de Alvaiázere com a condição de não se casar. Mas a Ribeirinha tinha um coração insondável e uma fisionomia moral enigmática. A seguir à morte do monarca decide retirar-se para as suas terras de Vila do Conde vestida de branco -, que era o luto da época, ao passar perto de Avelãs saiu-lhe ao encontro Gomes Lourenço Viegas que se apaixonara pela ruiva amante do rei quando a vira nos Paços de Coimbra. A Ribeirinha seguia viagem acompanhada pelo seu irmão e outros cavaleiros, houve luta, mas saiu vitorioso o mentor da emboscada que se conseguiu apossar da sua amada e com ela se veio a refugiar no Reino de Leão. Mais tarde ao voltarem à corte de D. Afonso ela instou com o rei para que fosse implacável e fizesse justiça sobre o rapto que sofrera. O rei mandou mata-lo. A Ribeirinha de novo livre voltou a casar com João Fernandes de Lima de quem teve filhos. Viveu até depois dos noventa no Mosteiro de Grijó, muito velhinha, a quem a mocidade foi radiante pela beleza, uma quase rainha que tantas paixões ateara  e desencadeou tempestades sentimentais pelos atributos de beleza incomum, ainda foi procriadora de poetas!
Séculos mais tarde seria de novo Maçãs de D. Maria palco de amores -, desta feita os príncipes foram os meus pais no dia do seu comum aniversario celebrado a 27 de julho de 1956 ,- ela 20 primaveras,- ele 19 -, sem "meias medidas" no posto de correios que funcionava ao tempo no Armazém das Cinco Vilas.
Sem meias medidas com calores exacerbados a pensar em tantos amores nesta terra já vividos decidiram dar azo ao entusiasmo da paixão sem pensar em consequências... 
" loucos decidem fazer a minha encomenda para a cegonha trazer no ano seguinte " tal pressa em saborear o fruto proibido deu mote à minha alcunha "de apressada" com o reparo "parece que foste feita às pressas"… 
Honra seja feita ao meu pai em exigir à minha mãe que assumisse a gravidez enquanto solteira. Problemas haviam -, acabado de se matricular no curso de Engenharia em Coimbra, por outro lado a barriga da minha mãe tinha tudo para se desfigurar da habitual silhueta magra. Decisão ponderada -, o melhor naquela altura foi a aposta da minha mãe pedir a transferência do seu posto de trabalho nos Correios para a ilha da Madeira. De mala feita a caminho de Lisboa para embarcar no paquete Vera Cruz. Em tempo de espera para embarque ficou hospedada em casa do Fernando Coimbra da Moita Redonda, o destino ditou virem a ser meus sogros -, o filho Luís Alberto de três anitos, traquinas, não parava de fazer tropelias até que ela chateada lhe gritou e deu uma bofetadita, sem saber que viria a ser o seu futuro genro. Tristezas não pagam dívidas aproveitou a capital para se distrair e passear pela capital. Em 1956 assisti ao ensaio geral da "caixinha mágica. 
Aparelho Philips anos 60 igual à da casa dos meus pais 
Assisti empiricamente na barriga da minha mãe ao Ensaio Geral dos primeiros passos da Televisão em Portugal na então Feira Popular, instalada no espaço onde veio a ser construída mais tarde a Gulbenkian, corria o mês de setembro de 1956.No entanto ficou para a história a data oficial das emissões regulares a 7 de Março de 1957. Tendo ocorrido o meu nascimento em Maio -,apraz-me o gozo de saber que nascemos no mesmo ano. As emissões começaram por ser apenas a preto e branco até à meia-noite, encerrando a emissão ao som do hino nacional. Quem não faltou à despedida da viagem do paquete foi a minha avó Maria da Luz, vinda de propósito à Calçada dos Cavaleiros nº 7 à parte de casa alugada pelo casal Coimbra, para se despedir da sua filha querida nascida em tempos de menopausa -, mas a sua princesa nem se levantou da beira da cama de ferro, com medo que se notasse a barriga -, que não se notava, mas ela achava, dizendo-se indisposta contou mais tarde a minha sogra…Para a consolar a minha mãe sabendo que ela não abonava o seu namoro com o meu pai, em surdina  lhe diz em tom meigo "também acho o Fernando, com pernas muito altas...Valente de apelido e de altura com 1,89 cm no contraste com pouco mais de metro e meio da minha mãe.. A minha avó era mulher rude, habituada a subir a costeira do Outeiro do Cuco da Nexebra, de barril na mão até à mina de S. João esventrada no xisto em ambiente escuro propício à sobrevivência de aranhões, que por esse fato desenvolvem patas muito compridas e com isso ela fazia a comparação com o meu pai e depressa lhe pôs a alcunha "pernas aranhão de mina"...A minha pobre avó acreditou na minha mãe, que se deixou ficar comigo no bucho sem nada lhe dizer da gravidez, tão pouco se condôeu de ter falseado sobre o namoro, e a mãe apesar de sofrida acreditou nela achando que estava triste por ir trabalhar para a Madeira, ficar longe da família, resignada se despediu, abalando de volta à Moita Redonda convencida que o namoro não ia avante. Viagem da minha mãe dolorosa no mar pelos enjoos e vómitos, difícil aguentar a comida no estômago, fragilizada e sozinha ao chegar ao Funchal deparou-se com uma realidade tão estranha, diferente de tudo o que conhecia no Continente, a juntar saudades, logo sentiu o desejo desmedido de retroceder à pátria...  Enquanto isso na terra o "Zé carteiro" tardava em trazer notícias ao meu pai  que impaciente de tanta saudade decide "pôr pés a caminho" se melhor o pensou, melhor o fez "meteu mãos ao cofre do meu avô, o grande dicionário de Língua Portuguesa, onde fielmente entre folhas entalava notas gordas de 100 escudos" de algibeira cheia sem dar "cavaco a ninguém" partiu a caminho de Lisboa, onde apanhou o primeiro aeroplano para o Funchal. Debalde apeado na ilha debate-se com um grande problema -, não sabe a morada da sua amada -, desesperado, não tinha como poder obter informações sobre o seu paradeiro só lhe restava uma alternativa -, voltar a casa inconsolável, o que fez. Trabalhava ela na Ponta do Sol, um paraíso selvagem no meio do Atlântico, numa região de muitas bananeiras. 
A minha visita à ilha da Madeira aconteceu pelo festejo dos meus trinta anos na primeira vez, a minha irmã levou a nossa mãe a um congresso dos Correios, juntámos o útil ao agradável -, festa inesquecível, tantas emoções sentidas na " festa da Flor" grande o ramalhete surripiado dos carros alegóricos. Adorámos. Quase irreconhecível a casa onde esteve hospedada, igual a estação de Correios na subida da calçada sobranceira ao mar. A vila de Ponta do Sol estava em mudança, pouco havia do antigamente até o mar parecia diferente com o novo molhe para cortar a ondulação em tripés de cimento armado. Anos mais tarde voltei novamente à Madeira e a Porto Santo com a minha mãe, novos tempos de vias mais rápidas, muitos túneis tinha-se perdido a magia da sinuosidade da paisagem do contorno dos montes, no passado sem dúvida mais interessante, o mar sempre em pano de fundo fosse a subir ou a descer com casas plantadas a pique, logo pensei para os meus botões…" dia que o marido zangado com a mulher dê em correr atrás dela, só se encontram em bracejo no mar…". 
Desejado regresso o anseio maior da minha querida mãe em vir embora da Ponta do Sol sem hipótese de retorno. Mulher sofrida só pensava no nosso Portugal - não gostou da aventura, só o conseguiu ao fim de dois meses para Lisboa,  graças à sua audácia em pedir ao Correio Mor que intercedesse na sua transferência, o que aconteceu. Sorte da casa onde vivi até à minha adolescência já ter luz elétrica e televisão no início de 60 -, contavam-se pelos dedos de uma mão, os televisores nesse tempo na vila de Ansião. Inegavelmente uma mais-valia para um maior conhecimento do mundo, apesar de na época se viver em ditadura. 
Tanto eu como a minha irmã sentíamos um chamamento em imitar o que víamos na caixinha mágica com o fascínio da publicidade televisiva.Incentivou-nos em criar coisas diferentes com os meios que tínhamos à mão. 
Operação ao pintainho…foi despoletada com a notícia televisiva no ano 1967 no mês de dezembro -, o mundo teve o conhecimento do primeiro transplante ao coração efetuado na cidade do Cabo na África do Sul pelo cirurgião que viria a tornar-se mundialmente famoso, Dr. Cristiaan Barnard...mas não foi ele... 
Hamilton Naki sul-africano, negro de 78 anos foi um grande cirurgião. Foi ele quem retirou do corpo da doadora o coração transplantado para o peito de Louis Washkanky em dezembro de 1967 na cidade do Cabo, na África do Sul -, na primeira operação de transplante cardíaco humano bem-sucedida. Um trabalho delicadíssimo. O coração doado tem de ser retirado e preservado com o máximo cuidado. Naki era talvez o segundo homem mais importante na equipe que fez o primeiro transplante cardíaco da história - não podia aparecer nos media, porque era negro no País que vivia o Apartheid nem era formado. 
Quem ficou com os louros, foi o cirurgião-chefe do grupo... o caucasiano Christian Barnard que se viria a tornar numa celebridade instantânea...e ficar na história. Porque Hamilton Naki não podia nem sequer sair nas fotografias da equipe. Quando apareceu numa -, por descuido, o hospital informou que era um faxineiro. Naki usava jaleco e máscara, jamais estudara medicina ou cirurgia. Tinha largado a escola aos 14 anos, era jardineiro na Escola de Medicina da Cidade do Cabo. Mas aprendia depressa e era curioso, tornou-se o faz-tudo na clínica cirúrgica da escola, onde os médicos brancos treinavam as técnicas de transplante em cães e porcos. Começou por limpar os chiqueiros. Aprendeu cirurgia assistindo experiências com animais. Tornou-se um cirurgião excepcional -, a tal ponto que Barnard requisitou-o para sua equipe.
Era uma quebra das leis sul-africanas. Naki, negro não podia operar pacientes nem tocar no sangue de brancos. Mas o hospital abriu-lhe uma exceção. Virou um cirurgião, mas clandestino. Era o melhor. Dava aulas aos estudantes brancos, mas ganhava salário de técnico de laboratório, o máximo que o hospital podia pagar a um negro. Vivia num barraco sem luz elétrica nem água corrente, num gueto da periferia. 
Depois que o Apartheid acabou, ganhou uma condecoração, e um diploma de médico honorário. Nunca reclamou das injustiças que sofreu durante toda a vida.
Ota ao tempo foi tão grande e inusitado acontecimento para mim, por o órgão transplantado estar ligado aos afetos. No caso o coração de uma senhora jovem que sofrera um acidente e o paciente recetor, um homem de mais de cinquenta anos. A forte mediatização televisiva, inédita e surpreendente, inevitavelmente marcou-me e à minha irmã intensamente. 
A nossa tia Maria tinha-nos dado ovos galados e ensinou o preceito do "choco" para fazer o ninho para não haver rejeição da galinha e nascerem pintainhos…lindo foi vê-los a picar os ovos para nascer e logo esgravatarem pelo quintal até ao dia que um deles foi pisado pelo galo a espanejar vaidoso as asas e por descuido lhe ferra a espora da pata na barriga -, de fora ficaram as tripitas -, aflita corri a contar à minha irmã, num instante o seu sentido estratega foi de pôr a ideia televisiva em prática. Fizemos a operação de imediato ao pintainho, enquanto eu o segurava em cima da mesa da cozinha, a minha irmã aconchegou as entranhas, unindo as peles cozendo com agulha e linha, desinfetámos com mercúrio e água oxigenada o que havia no armário de farmácia na casa de banho, improvisámos uma ligadura com um trapo branco, e depois foi deitado numa caixa de sapatos, a fazer de incubadora, junto à lareira como víamos os bebés prematuros na televisão - seria fevereiro, o inevitável aconteceu, coitado do pintainho não resistiu à infeção e morreu. 
Desoladas ficámos de o ver esticado de patas para o ar. Melhorámos, ao saber que o paciente transplantado morrera após dezoito dias de pneumonia. Ainda assim o consolo pois foi a nossa primeira operação por influência televisiva! 

Depilação... a publicidade incitava esse fascínio maior em  se experimentar. Vaidosa, numa bela tarde de sol, sentada no chão em cima de uma manta de trapos no quarto da costura iniciei o ritual, o melhor que pensei foi usar a máquina de barbear Fillshave do meu pai, inesquecível foi o momento em que senti na pele o impato de repelir os pelos da perna -, estremeci, e a deixei cair no chão, desencaixadas ficaram as cabeças e logo três, não fui capaz de as por no sítio, mal-ajeitadas, fiz-me de sonsa e arrumei-a no armário da casa de banho -, sol de pouca dura, no dia seguinte o meu pai ao querer fazer a barba depara-se com aquele cenário, a fúria foi tal que o castigo não o foi menos, decidiu pendurar-me com cordas na trave mestra do sótão, tipo Cristo suspenso, só sei que gritava, era domingo, nunca tanto quis ir à missa, naquele dia não foi dia de ir… 

O Ultramar, a guerra e o contingente militar…no telejornal a preto e branco, constantemente havia reportagens da partida de militares a embarcar em grandes navios, de cotovelos uns nos outros no parapeito dos navios -, todos se queriam mostrar para o último adeus na despedida sem saber o que os esperava(?) -, partiam para guerras que não eram deles, pior -, muitos não tinham bilhete de volta... acenavam com lenços, mais parecia a Cova de Iria no adeus à Virgem Maria no 13 de maio…honra seja feita às Madrinhas de Guerra, que trocavam correspondência com muitos tropas naquele tempo, a forma de saberem notícias e trocar afetos escritos em Aerogramas… grande era o tráfego... Impressionante a finura do papel -, missiva dois em um, fazia de carta e envelope. Via-os a serem distribuídos nos cacifos pelos carteiros no Correio velho. Dava comigo a pensar como seria que as Madrinhas de Guerra, ou no caso os tropas os interpretariam -, o que sentiam ao ler emoções escritas tão longe da pátria? Quero acreditar que encerrariam palavras mágicas redigidas de saudade com ajuda e força para aguentarem a missão -, forçosamente de afeto. Muita gente acabou casada por Procuração... Tamanho sofrer era insuportável observar guerras em direto na televisão, ver corpos mutilados, despedaçados, helicópteros a transportar feridos e a deixa-los ao Deus dará pelo capim-, Biafra, Vietname e províncias ultramarinas…triste a chegada de urnas dos que morriam... dos boatos que dentro viriam pedras por muitos corpos terem sido destroçados em minas...ou nunca encontrados!
Mais uma ideia nascida pela televisão, a de fazer uma bomba… Sobretudo a minha irmã sentia uma vontade nata em experimentar uma bomba no tufo de erva príncipe do adro da capela de Santo António.
No telejornal todos os dias a preto e branco as guerras inspiravam em nós invenções com fazer uma "Bomba" -, um dia expedita foi à loja buscar pólvora de encher os cartuchos para a caça e meteu-a no tufo de erva, à sua volta juntaram-se os cachopos curiosos do costume para assistir à brincadeira, acendido o rastilho deu-se um grande clarão e um tremendo cheiro a chamuscado -, foram-se as sobrancelhas, pestanas e franjas de cabelo dos rapazes, que em cima do tufo estavam para ver a bomba: Artur, Toino, Tonito, Tó Zé -, as cachopas saíram ilesas do acontecimento apenas assustadas com o estardalhaço pelo cheiro forte a pólvora e a rir de os ver tisnados como uma galinha depois de depenada. Pela noitinha os seus pais, o " Trinta" o "Pego" e a Carmita vieram pedir explicações -, proibidas ficámos de voltar a mexer na pólvora e de até brincar com eles. Acedemos caladas -, no dia seguinte já não nos lembrávamos dos recados…

O caniche a que chamávamos Franjinhas ...Natal houve na década de 60 que recebemos uma prenda em comum. O nosso pai foi a caminho de Coimbra no táxi do Germano comprar um caniche. Trazia-a ao colo muito feliz -, fez-nos no imediato lembrar do "Franjinhas" dos Desenhos Animados, branquinho, de pelo encaracolado, animal dócil, demos-lhe o mesmo nome. Ligeiras em lhe dar banho, era inverno estava muito frio, apesar da água tépida, o animal não resistiu ficou paralítico das patas traseiras, aflito o nosso pai ligou para o veterinário Dr. Mateus, que depois de o ter observado, lhe sorriu com um redondo não..."Valente não há nada a fazer, tenho de o abater" com uma injeção finou-se para sempre o nosso caniche-, desgosto imensurável para ambas. O funeral aconteceu na fazenda da"Vinha" sepultado debaixo de um grande Pereiro , mesmo na extrema com a fazenda da tia Maria José do Alto. Cobrimos a pequena sepultura com muitas flores. Assiduamente íamos visitar o nosso caniche que tivemos apenas três dias…Como tínhamos visto o cemitério no Jardim zoológico. 

Surpresa total ver senhoras finas a fumar na televisão. Também o meu pai era um fumador incorrigível, fumava de noite e de dia. Personalidade nervosa e inquieta só tinha controlo fumando quatro maços de tabaco por dia. Sempre de cigarro na mão -, fosse a comer, trabalhar, até na cama ao adormecer fazia pequenos incêndios, pior ao estrear camisas em algodão ou popelina as afogueava num total desalento para a minha mãe. Mas pior era chegar depois do turno da meia-noite do Correio e ter a insensatez de nos mandar de volta à vila para comprar tabaco - que remédio tínhamos senão acatar e ir de volta, o que nos passámos ter de acordar a Helena do Alexandre para nos abrir o portão e vender um maço de cigarros àquela hora imprópria para tal compra! 

História de beatas e cigarros... Usufruíamos à época apenas uma casa de banho grande e completa, nela havia uma mesinha e cinzeiro com beatas, até a criada o limpar todas as manhãs. A minha irmã de mentalidade muito à frente gozava com tudo e todos, sentia um prazer nato em as reacender com o isqueiro e fumá-las na casa de banho. Até ao dia que o nosso pai visivelmente acordado mal disposto, foi mais do que uma vez à casa de banho, nesse entretanto reparou que as beatas não estavam no cinzeiro -, o uso da casa de banho pela manhã era grande, perguntou à criada se já o tinha limpo, ao que esta delicadamente respondeu "não Sr. Fernando, ainda não tive oportunidade, as meninas sabe como se demoram". Começou o inferno, fugimos às perguntas, de bicicleta fomos para o Externato, ele para o Tribunal…Ao fim do dia questionou-nos novamente quem era a fumadora, como as duas dissemos que não, quis no momento tirar a prova dos nove. Inverno, com lareira acesa, meteu-nos encostadas à parede, o lume crepitava, nele pôs o espeto em ferro a queimar em brasa, nas nossas bocas acendeu um cigarro. Queria testar a fumadora... 
nervosa, só me lembro que o fumo me saia pelo nariz, ouvidos e boca, engasguei-me de tal maneira com o sabor amargo, logo viu que não era eu, nisto a minha irmã atrevida gozava o momento "Paizinho, quer que inale o fumo para dentro ou faça bolinhas?" Visivelmente furioso, como foi possível ter-se deixado enganar, achava ele que eu por ser mais velha seria a prevaricadora, apressou-se a desculpar a minha irmã, por ser a sua "menina rapaz, contrapeso, meio quilo, meio tostão, menina dos seus olhos" perdoou-lhe. Lamentavelmente para nos amedrontar o espeto de ferro continuava ao lume incandescente. Sabe-se lá o que faria se fosse eu a fumadora, caso fosse perder o bom senso o que acontecia num virote, nem é bom pensar no desfecho. Fumar, eu? Sim. Bons charutos cubanos em caixinhas de madeira com letras vermelhas ofertas de amigos vindos do Brasil revestidos a papel celofane e fitinha vermelha para abrir. O meu pai nem vê-los eram todinhos para mim e para a minha irmã -, verdade seja dita mal os conseguíamos pôr na nossa pequena boca -, gostávamos do cheiro suave e forte. Deleite maior, abri-los para apreciar as folhas hermeticamente prensadas, um trabalho manual de requinte, delícia vivida na sala de visitas sentadas no canapé de molas duras, forrado a pano xadrez vermelho e preto, lindo de costas de madeira com corações, as duas de perna trocada a ouvir rádio "Os Parodiantes de Lisboa" ou a ver televisão! 

A "Pipi das Meias Altas"...apareceu em 1969 a série televisiva - miúda irrequieta de trancinhas ruivas e meias coloridas, foi uma loucura  fazer a caderneta de cromos, também outra série francesa deu-nos mote para formar uma sociedade. "O clube dos cinco" - os sócios os cachopos do Bairro – o jogo consistia na troca de coisas uns com os outros. Um dia o " Tó Zé da Carmita" não tinha nada para a troca - na casa da Deolinda em dia que cumpria castigo imposto pelo pai "presa à mesa" como se fosse uma galinha...o malandro do Tó Zé rouba-lhe um tanque de lata feito pelo pai dela - mal acabado o castigo ela corre no encalço dele com fé de o reaver, o Tó Zé não foi de modas, atira-o para o silvedo da Cerca do hospital em frente da casa. Nesse dia não houve troca no clube nem mais brinquedo para se brincar. Nestas trocas e baldrocas trocou-se uma libra de ouro da minha mãe que tinha deixado no armário da cozinha -, à falta de coisa melhor tal a luz que resplandecia foi-se para sempre! 

Claro a televisão também alterou significamente a nossa forma de vestir, fosse no uso de mini-saias ou max-saia, que fui a primeira a usa-la na vila de braço dado com a minha mãe, pois sentia-me insegura! 

Falar das grandes e inéditas reportagens... 

Santuário de Fátima...correu no ano de 1963 a primeira reportagem em direto das comemorações religiosas do treze de maio pelo famoso realizador televisivo Luís Andrade,- mal tinha terminado a transmissão em direto,  a tia Maria uma cumpridora ferrenha de promessas, já vinha de volta de cumprir a sua, mal me distraia a olhar pela janela a via a subir ao adro com passo apressado de lenço pela cabeça em laço atrás da nuca, avental riscado, debaixo do braço a trouxa -, míngua o farnel quase sempre a pão e água, nos pés chinelos de dedo. Chegou a cumprir meio ano de promessas a Fátima, não sei se proveu efeito tão grande e doloroso rogo. Aquela tia Maria tinha uma genica fora de série -, não andava, corria, conhecia atalhos como ninguém… 

Desfiles das Marchas Populares... na Av. da Liberdade na tribuna não faltava a Beatriz Costa com a sua linda franja com brilhantina… 
Festival Internacional do Circo Monte Carlo no Mónaco... chamariz na época natalícia, a magia do circo, imperdível a entrega pelas mãos da família da casa Real Rainer dos palhaços de ouro, prata e bronze… 
Festival do Sequim de Ouro... onde crianças de todo o mundo vinham cantar... 
Concerto de Ano Novo ...com o famoso Maestro Leonard Bernstein, nem sei quantos anos vi este concerto -, homem magro, sedutor de franja grisalha, conferia graça e atitude num estilo nobre aos movimentos da batuta... 
Jogos Olímpicos ... com desempenhos fabulosos dos atletas da antiga URSS, soberbo apreciar os ginastas no "Cristo" em argolas…da romena Nádia Komanecci, ginasta medalhada por nove vezes na trave olímpica. 
Concursos de Patinagem Artística ... viriam em mim despertar a mágica forma de dançar sobre rodinhas aprendi mais tarde no Colégio dos Salesianos no ringue do Estoril… 
Jogos de Futebol ....a Pantera Negra -, nome que os ingleses deram ao nosso Eusébio no célebre Campeonato Europeu em que a Seleção Portuguesa se sagrou em terceiro lugar - esquecer é que nunca - ao sair do avião na cabeça um boné de polícia, também do meu Sporting que não ficou com ele "fartos, estavam de levar barretes" pelos vistos depois de tantos anos, continuam (?) … 
Festival da Canção... em 1967 ganho pelo Eduardo Nascimento com a canção "O vento mudou" ...impossível perder todos os anos Simone de Oliveira com a canção a "Desfolhada" cantou uma frase que ficou célebre - "Quem faz um filho fá-lo por gosto" a primeira mulher a desafiar o prazer da mulher em tempo de ditadura, chegou de comboio a Santa Apolónia onde tinha uma multidão com mais de 20 mil pessoas para lhe dar as boas vindas apesar de ter ficado classificada em penúltimo, com uma canção imortal... Fernando Tordo com a "Tourada" ...a falar em cornos e...Poemas do saudoso Ary dos Santos… 
Euro Festival... em Viena de 1967 ganho pela Sandie Shaw do Reino Unido -, miúda irreverente cantou descalça "Puppet on a String" - eu e a minha irmã deitadas na cama dos nossos pais cobertas com pele de bode alentejana, de farto pêlo pintada em cor laranja, num virote nos pusemos a imitá-la dançando descalças ao fundo da cama… 
Filmes... westerns -,a série Bonança e o seu rancho, cowboys com pistolas, calças e casacos com franguinhas a esvoaçar com o andar, cheguei a ter um que a prima Stela do Escampado emigrada no Canadá me trouxe e muita inveja despertei quando o usava no colégio… famílias à procura do "el dourado" rumavam em carroças a caminho do Texas embrenhados no sonho de melhor vida -, pelo caminho apaches, índios, com cristas de penas a fazer de barretes, desfiladeiros no Arizona, paisagens naturais vermelhas no Canyon … 
Visita do Papa Paulo VI a Fátima... grandes ranchos de gente a pé -, cumpridores de promessas, a primeira vez que senti essa verdade… 
Missão da Apolo 11... com os astronautas Neil Armstrong e Edwin Aldrin os primeiros humanos a pisar solo lunar que pilotaram o foguetão que chegou à Lua em Julho de1969 - , em casa passámos horas postadas a olhar para o ecrã todo o dia a ver -, nada, até que aparece uma imagem de crosta inóspita de crateras de todos os tamanhos, a falta de gravidade fazia os astronautas andar aos pulinhos, o mais insólito e bonito… 
Cortejo fúnebre de Salazar... após o transporte da urna de comboio com saída da estação do Rossio em 1970 para a sua terra natal Santa Comba Dão -, faleceu a 27 de Julho dia de aniversário dos meus pais, seria uma terça-feira, logo pelas nove e pouco da manhã quando ouvi a notícia no rádio, menos das dez horas estava a contá-la à Ti "Augusta do António da Olinda" no seu talho - mulher boa sempre me deu uma febra com a retórica "esta é para o gato"… 
Assassinato do Presidente Kennedy dos EUA ...em Dallas quando acenava à multidão num carro descapotável com a esposa Jaqueline… 
Bailados... jovens dançantes vestidos de maiô: meninas de sainha em tufo de tule e sapatilhas com laços de seda num esvoaçar delicado, os homens pareciam reis ou fidalgos vestidos de collants aderentes tão colados ao corpo, não apreciava ver porque desconhecia o que havia escondido… 
Concursos televisivos.... o "Jogo do Galo" com Artur Agostinho e a Cornélia com Fialho de Almeida 
Eleição da Miss Portugal...em que a inesquecível Ana Maria Lucas foi uma das primeiras vencedoras. 
Ópera... na voz inconfundível da diva Maria Callas e do folhetim televisivo com o seu romance com o magnata da frota petroleira Onassis … 
Desenhos Animados... não perdia por nada o Franjinhas, Speedy Gonzalez, Walt Disney, Flinstones até aparecer o Vasco Granja com novidades animadas da Checoslováquia -, tais grandes alterações colidiram com o meu conservadorismo e com isso deixei de me interessar por animação e banda desenhada…coitado do Kalimero, o patinho negro... 
Programas de culinária: Maria de Lurdes Modesto e Filipa Vacondeus com esta aprendi na cozinha a dar uso aos restos -, em aproveitar as sobras para uma nova refeição, mais tarde apareceu o chefe Silva com as teleculinárias -, revistas decorativas que compilei carinhosamente em três volumes e guardo até hoje. 
Cinema português: António Silva, Beatriz Costa, Ribeirinho, Curado Ribeiro... gostava de ouvir e gracejar com o slogan..."oh Evaristo tens cá disto?" 
Cinema estrangeiro... saudade dos chamados "beijos técnicos" -, os atores fugazmente se atreviam a dá-los despertando em mim um gesto nunca visto, ingenuamente enroscava as mãos defronte dos meus olhos como se fossem binóculos e cheia de vergonha, ruborizava, tremia naquela de querer e não querer ver, à laia do Shakespeare -, "To be, or not to be: that is the question"… 
Teatro...semanalmente havia teatro televisivo com atores consagrados como a saudosa Laura Alves, Amélia Rey Colaço, Rui de Carvalho, Ivone Cruz, Irene Isidro e,... 
Vozes emblemáticas ... ficaram para sempre na minha memória e no ouvido : TV Rural Eng.º. com o Engº Sousa Veloso; Folclore com o Dr. Pedro Homem de Melo; Vitorino Nemésio no seu imortal programa "Se Bem me Lembro" a tal ponto cativante aquela sonoridade forte da voz com pronúncia da Madeira, irrompia a falar em várias frentes para voltar a encontrar-se no final do programa - algo me atraia sem contudo o entender; Natália Correia de olhar negro intenso e voz forte declamando poesia; David Mourão Ferreira a falar de Literatura, Poesia e Língua Portuguesa ;Jorge Alves com a TV Guia e,... 
Programas de entertainer...Zip Zip com Fialho Gouveia, Carlos Cruz, Raul Solnado e mais tarde o Nicolau Breyner e o Herman José 
Telejornal ...José Maldonado, Artur Albarran, Ana Zanatti, Eládio Clímaco , Isabel Baía, Margarida Marante, Margarida...e, tantos outros locutores. 
Mundo subaquático ...nunca antes filmado com peixes de várias cores de todos os tamanhos com corais, atóis…mas que se viam a preto e branco... 
Natal dos Hospitais, Teatro , documentários, Telescola , Reportagens. 
A RTP mostrou e continua a mostrar o que se passa no PAÍS e no Mundo 
Revive as nossas Tradições d'ontem para que não morram na nossa cultura num contato diário com o povo numa aposta dinâmica de divulgação e preservação! 
Fatalmente foi um tempo que as anomalias da corrente interrompiam a emissão televisiva, premente no aviso" Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos" … 
Minutos a fio, eu e a minha irmã deliciávamo-nos a lê-lo invertido "momentos de dentro segue programa…" havia anúncios muito engraçados de publicidade que imitávamos e outros fazíamos troça. 
A música do slogan da Eurovisão durante anos o mesmo, ficou no ouvido, imponente, valorizava-se no tempo -, a nossa globalização. 

O 2º canal da televisão…A rede de expansão dos retransmissores aumentou chegando a todo o lado o que possibilitou a muitos a aquisição da caixinha mágica. Abriram-se novos estúdios no Porto o maior, outros mais pequenos noutras cidades. Em alternativa ao único canal foi inaugurado em 1968 o 2º canal - proporcionava ao almoço emissão.Uma série em especial retratava a vida no campo de um Eng.º agrónomo casado com a atriz Zázá Gabor. O mais marcante na série televisiva -, o despropósito da instalação do telefone na herdade no cimo do poste à porta de casa e as constantes peripécias de o subir e descer tipo guarda fios para atender. Também não lhe ficava atrás a esposa que não sabia cozinhar - no tempo uma coisa estranha, habituadas que estávamos a saber que as mulheres aprendiam essa arte desde cedo – ela só sabia fazer panquecas de farinha. Nas tardes de mais frio a imitámos - de alguidar no chão com farinha a que juntávamos água morna, um cheirinho de aguardente ou sumo de laranja, bem mexida com a colher de pau. Despejavam-se colheradas com a concha da sopa na frigideira – as nossas panquecas comiam-se polvilhadas com açúcar e canela, uma delícia. Boas as nossas "panquecas" que aprendemos a fazer na televisão com aroma a aguardente ou sumo de laranja, essa invenção é nossa!
A televisão nos dias de hoje deveria ser mais pedagógica. Ainda há dias no supermercado ouvi um miúdo a perguntar ao pai de onde vinha o chouriço...
Afinal, hoje a maioria dos espectadores são idosos, prisioneiros na sua própria casa, inválidos, indivíduos em prisão domiciliária, doentes, reformados, desempregados.
É tempo de cativar novos públicos para a caixinha que ajudou a mudar o País! 
Estou farta de vozes estridentes de pseudo locutores...gente sem cultura, com repetitivos gestos desadequados, slogans repetitivos, sobretudo de inverno vestidas à verão fazendo com que a juventude as imite ...há muito exagero na palavra, na atitude, no estar, na falta de fazer a coisa certa - porque fazer televisão é dar IMAGEM no dever fazer bem para passar a mensagem! 
Tempos idos que a minha casa se enchia de pessoas nossas vizinhas para assistir a estes programas, embora envergonhadas, despertava nelas uma imensa curiosidade de conhecer a televisão - nem se sentavam - encostadas às ombreiras da porta da sala de braços cruzados e boca aberta deleitavam-se com a caixinha mágica. 
Estarrecida a avó Maria da Luz nascida na Moita Redonda, quando vinha passar uns dias a minha casa  a Ansião, perguntava à minha mãe: "Oh Dina, será que eles nos vêem?"…
Parabéns Televisão pelos 56 anos...farei daqui a dois meses ! 

segunda-feira, 4 de março de 2013

Mouta Redonda estórias dos meus avós maternos e vizinhos










Os meus avós maternos José Lucas e Maria da Luz Ferreira viveram na uedonda na freguesia de Pousaflores no concelho de Ansião.

                          
Igreja da Vidigueira no casamento filha primogénita . A minha Titi, nascida em 1911, que o pai quis que estudasse em Coimbra, tirou o 5º ano, aqui elegante vestida de tailleur,chapéu e mala de mão, .
No dia do meu batizado a minha avó com a minha mãe e uma prima do meu pai em Ansião
Atropelam-se em fúria ao ouvido relatos do passado da vida dos meus avós que me foram contados vezes sem conta pela minha mãe nos serões do turno da meia-noite no Correio velho -, tempos de inverno ao sabor do farnel aviado de casa ao sabor da quentura da braseira ateada graças às pratas dos maços de cigarros até que desfaleciam em cinza, qual castelo de cartas...ao bater das doze badaladas do relógio da Reguladora dava o mote de ir para casa. 
O meu avô materno homem nascido na aldeia de Lisboinha,- topónimo antigo de 1514, então chamada "Aldeia de Lisboa a pequena" quis o tempo que se fidelizasse em Lisboinha, a minha avó Maria da Luz pronunciava "Lusboinha" pertence à freguesia de Pousaflores, no concelho de Ansião, curiosamente também tem o seu Rossio no largo da capela e fontanário...o padrinho deu-lhe a graça no batismo o nome de José -, igual ao orago e padroeiro da capela da aldeia que o viu nascer -, filho de gente muito pobre com um rancho de filhos de apelido Afonso Lucas . 
A minha avó recebeu o nome de Maria da Luz Ferreira nascida na quelha do Vale na aldeia da Moita Redonda, no seio de uma família de 3 irmãos. Analfabeta, tinha bom coração, muito amiga de obsequiar ajudava todos que a procuravam -, matou a fome a foragidos e pedintes, tantas almas esfomeadas abrigou no palheiro onde os criados dormiam, num tempo de pobreza. Corria longe o seu nome de pessoa de bem  de matar a fome sem olhar a quem, no jeito popular se falava dela " uma mãos largas não sabia dizer…não", digo eu mulher de muita personalidade!
Custava-lhe ver o marido "enganar, passar a perna no freguês" - a minha mãe lembra-se de a ouvir chamar a atenção " atão Zé enganaste a pobre mulher"
Quelha do Vale
Onde moraram, a casa já não existe, era do lado esquerdo a seguir à oliveira, na frente é o ribeiro que desce da Nexebra com as chuvas.

Corria o ano de instauração da República o mesmo do enlace dos meus avós maternos,- muito pobrezinho como era apanágio ao tempo a míngua de oferendas… prato falante de faiança Coimbrã " Viva os Noivos " com queijos do Rabaçal; bacia com chouriças e morcelas; duas rosquilhas de espigas de milho; meia saca de trigo; uma carroça e uma mula.
Onde iria morar o jovem casal Lucas? Por haver parca escolha o jeito foi fazê-la ao lado do casebre pobre onde a minha avó Maria da Luz tinha nascido no Vale na Moita Redonda, aproveitaram o declive do terreno onde fizeram uma cave com frente para o ribeiro nela instalaram uma taberna, mercearia e venda de panos, no 1º andar a casa de habitação. Aqui nasceu a minha mãe num lindo dia de verão em 1934.
A casa  dos meus avós com as  duas janela
Boas lembranças ainda vivas na minha memória da casa dos avós por se destacar na aldeia apesar de simples -, desse jeito sempre a admirei. Castiça ao seu tempo por ser grande de três entradas. Do lado do quintal era alpendrada em chão em terra, no pilar de madeira preso o cano de plástico ligado à mina da Cavada para abastecimento de água. A cozinha apesar de pequena tinha a sorte do janelo virado ao sol poente, sob este havia a pia de pedra de barro vermelho de pasta mole muito caraterística na região -, a serra da Ovelha de predominância calcária acaba estrategicamente no sopé a nascente para nascer uma língua estreita de 3 a 4 km onde predomina um barro grosso muito escuro desde Lisboinha d'Além até ao Portelinho nas Lajes, a partir daqui irrompe em fúria o xisto.
A chaminé altaneira a última a ser derrubada por uma máquina de lagartas...
Construída pelo tio António do Vale, um grande pedreiro e mestre de obras.
Na praça junto da igreja no Avelar corria o mercado ao ar livre ao domingo, a minha avó Maria da Luz tinha o hábito bondoso de mandar um pão alvo, à sogra velhota e cega, no tempo a fome grassava-, debalde a mulher que fazia de correio para Lisboinha, servia-se da enfermidade da pobre velhota num tempo de extrema pobreza …A pobre e cega sogra quando via a minha avó dizia-lhe " Oh Luz, tem cuidado olha que a mulher por quem mandas o pão entrega-me a côdea armada, comendo o miolo, julga que além de cega sou lêrda"...


Peixeiro começou por ser o ofício do meu avô -, deslocava-se na sua carroça à Leirosa para comprar canastras de sardinha que encomendava no telégrafo em Pombal. O que contava sobre o mar despertou na minha avó e na sua comadre Rosa da Quelha -, avó do meu marido, um interesse fora do comum em ajustar um dia para com ele irem nessa viagem. Maravilhadas ficariam a contemplar as ondas altivas de espuma branca, a partir daí passaram anos a ir a banhos.
A minha avó atiçava o meu avô Zé Lucas com ditos e mexericos infernizando-o com as suas irmãs de Lisboinha ..."pois, pois -, elas deixam as couves e os feijões só para comerem peixe" por ser tempo de fartura, que de fome tinha sido e muita !
As fegas ou aceifas
O meu avô ganhava mais no verão como capataz na safra das ceifas em herdades nas imediações do Maranhão, Benavila e Avis. Reunido o rancho de homens contratados que a ele acudiam na petição de chapéu estendido, abnegados para receber a bênção da escolha - tanta era a miséria naquele tempo. No dia de partida ajuntavam-se de cabazes e cestões de verga ou sacos de junco aviados com a trouxa e o farnel para a viagem. No Alentejo o meu avô só contratava o pessoal com jorna a "seco" (o comer era por conta de cada um, ganhavam mais). Trabalhavam na herdade de sol a sol de foices nas mãos a cortar searas de trigo -, três leiras ou margens para os homens, duas para as mulheres ditadas pelo "manajeiro" não bastava o calor tórrido e a pouca água, havia alturas que um deles - o picanço -, homem desembaraçado, furão ceifeiro, obrigava o rancho a levar a heito a ceifa sem leiras atrasadas para maior produção e corte direito da seara. Só os homens atavam os fardos.
Mais tarde o meu tio Carlos Lucas também começou a levar gente para as ceifas na jorna de "comer"- o cozinheiro tinha de ser homem jeitoso com púcaros e panelas de barro -, alcunha "coca" que deles se ocupava nas manhãs a fazer o almoço que os patrões no tempo serviam: gaspacho, açorda com sabor a alho, sopa de beldroegas ou couves migadas porque as havia à beira do Maranhão.
O "coca" de tarde não escapava à ceifa de três margens de seara. No final das "fegas ou das aceifas" assim era uso as gentes da nossa terra chamarem à ceifa regressavam esfalfados a casa -, mas contentes na algibeira falsa da forra do casaco vinham guardadas as notas - muitos por não saber ler nem escrever era uso no tempo se atribuir à nota de 100 escudos a bitola alta de qualquer acordo ou negócio, por exemplo se tinha a receber um conto de réis -, eram 10 notas. Uma boa jorna dava para suprir o inverno, comprar uma jeira de terra, um burro -, alguns deles no mesmo ano faziam duas safras, também iam ao Ribatejo à apanha da uva e da azeitona.Presente irrecusável o negócio do Alentejo… Há muito que o padrinho do meu avô Zé Lucas de Lisboinha por estar velho e cansado lhe ofereceu o legado do labuto de paneiro pelo Alentejo na senda: Benavila, Avis, Santo António de Alcônrrego, Casa Branca, Sousel, Cano, Ervedal…
Filhos ilustres de Lisboinha
O da direita é primo da minha mãe, celebrou o meu batizado em Ansião
Na loja da casa na Mouta Redonda também se vendia ao tempo 2$50 de chita da tabela, riscado de Santo Tirso, sarjado, flanela, saragoça, fioco, casteleta xadrez, cotim...nas prateleiras do armário em portadas de vidro havia fardos de muita fazenda, por altura das festas podiam também albergar: alpaca; armur; astracã; baeta; burel; casimira; crepe da China; gorgorina: orgadim; seda; tobralco e serrubeco, já na prateleira do cimo até ao teto havia cobertores de papa da Guarda, Vouzela e finos das fábricas do Rio Ave e do Avelar. Compras feitas nos armazéns junto ao Hotel Astória em Coimbra. Ao tempo o meu avô comprava a mercadoria a fiado, só depois de vendida é que a pagava, - outros tempos. Contava a minha mãe que a sua carteira atulhada com um grande monte de notas presas por um elástico…
A minha mãe fez por duas vezes com o pai essa viagem, logo pela fresca rumavam sentados na carroça guiados pelo seu fiel macho até Chão de Couce, quedavam-se ao carvalho junto ao fontanário onde deixavam no chão um fardo de palha -, em cima da hora apanhavam a carreira do Pereira Marques.

Coimbra




Apeados na cidade iam na direção aos armazéns Lousada e a outro na Praça Velha fazer as compras, os empregados vestidos de batas cinzentas carregavam os fardos de fazenda que transportavam para a camioneta. Conta a minha mãe que se lembra de ver os vidros das janelas dos prédios com papéis colados com riscas sobre o amarelo no tempo da segunda guerra, - sem nunca perceber tal significado. Faziam outras compras, sapatos, chapéus, óculos, guloseimas. Um dia memorável passado na cidade dos doutores,- de regresso achavam-se no mesmo sítio onde de manhã tinham saído, descarregavam a mercadoria da camioneta para a carroça, quando chovia deixavam a carga no barracão que tinham à beira da estrada no Marco, a pensar nas vezes que a carroça descarrilou no ribeiro e a fazenda se molhou "um Deus que nos acuda" diziam no tempo as mulheres. Mais tarde o barracão foi garagem do Chevrolet guiado pelo tio Alberto de carta tirada em Alvaiázere, nele foram a Fátima em peregrinação, também a Avis conhecer a casa e quinta alugada em Santo António de Alcônrrego.
A viagem sazonal na rota de paneiro…
Casa da minha filha com a lancheira minha oferta
Acontecia em dia marcado duas vezes em cada ano a caminho do Alentejo. Enquanto o meu avô aparelhava as bestas, - um macho e uma mula no átrio do palheiro onde o Ti "João do Oiteiro" tirava o estrume. Amuados estavam os irmãos da minha mãe - Carlos e Alberto – novitos vestidos de fatiota de serrubeco cinzento com riscas vermelhas sob o comprido e chapéu na cabeça - não queriam ir com o pai aprender a arte de tendeiro pelos montes alentejanos – nisto a minha avó tratava do farnel para a viagem que levavam nas marmitas de lata ovais, bem acondicionado o bom bacalhau adoçado em capa de ovo e farinha; frango na púcara e, ainda sardinhas com molho de escabeche. Do Alentejo o meu avô trazia a carroça cheia de belo torrão de Alicante, paio, presunto, queijos, azeite e pão que aguentava sete dias. Nesse permeio, - semanalmente não passava sem ir às segundas-feiras ao mercado do "Cabaço" trazia fruta da época que a minha avó distribuía pelos vizinhos - um dia a Ti Joaquina tecedeira disse-lhe "oh comadre Luz, vossemecê tem alguma quinta no Cabaço?" A subir a Quelha do Vale ia o meu avô em modo de gozo respondeu à pobre velha - " tem, tem, ameixoeiras, cerejeiras…".
A minha mãe em cima do mocho com o cabelo cortado à garçone, pela calçada atrás só podia ter siso em Pousaflores, ladeada da irmã Clotilde e outras vizinhas.
Em dia de um regresso da temporada do Alentejo a minha mãe fazia espera por eles de braços cruzados ao ribeiro na esquina da casa da Ti Joaquina , vestia saita curtita às pregas castanho liso e blusita de popelina às riscas com gravata castanha a condizer com a saia, cuecas à mostra e, cabelo cortado à "garçonne" pela mão do Manel da Serrada da Mata -, acredito mais ansiosa esperava mais pelas novidades vindas do Alentejo do que saudades deles…há dois anos presenteei a minha mãe em dia de aniversário com a rota que o seu pai fazia pelo Alentejo, a minha irmã pagou o alojamento na pousada em Alter do Chão.
Com a minha mãe em Nisa a 27 de julho 2011 
Onde a emoção tomou conta de nós a matar lembranças de antanho
Excursão de Pousaflores ao Santuário do Cristo Rei 
Ao tempo para a sua construção correu um peditório a nível nacional, muitas paróquias fizeram subscrições para angariar dinheiro. Pousaflores não foi exceção. Para a inauguração em 1962 fez-se uma excursão com os paroquianos, a minha avó Maria da Luz fez parte da comitiva com a comadre "Rosa da quelha". Ficaram maravilhadas com o início da construção da ponte Salazar sobre o Tejo.No regresso breve paragem na Nazaré junto da praia puxa pelo taleigo e tira a bucha para enganar a barriga, naquilo abeira-se dela um rapazito, amiga de obsequiar tira outra bucha e presenteia o rapaz, mal se distrai a ver as ondas a bater na areia dá conta que ele a engoliu enquanto o "diabo esfregou um olho" pergunta-lhe "atão mê menino não gostaste da bucha qui te dei?" retorquiu o rapaz "oh mulher eu cá comia sete…" grande era a fome do petiz numa terra de peixe com mulheres de sete saias!
Garagem do meu avô sediada ao MARCO
Na estrema da freguesia de Pousaflores com Chão de Couce. O primeiro automóvel na aldeia de Moita Redonda, o caminho pedregoso e com chuva um dia a carroça resvalou e os fardos da fazenda caíram ao ribeiro. O prejuízo foi grande.Por isso comprou o carro para o filho Alberto guiar. A garagem servia também para guardar a mercadoria, e até a azeitona antes de ir para o lagar.
Outras boas lembranças da Moita Redonda… 
Invadem o meu estar as faldas da Nexebra ao vale, nas mini férias de natal. Das noites à lareira a ouvir o crepitar das carcóvias dos pinheiros e galhos dos eucaliptos, sentadas em tripés baixos na frente do lume onde se comia a janta num prato grande com um galo no fundo ou numa bacia, assente na tripeça, e em punho garfos de ferro com cabo de madeira. A enfusa sem asa com o vinho de sabor esquisito "coveiro", e para adoçar a boca e umas passitas de figo pingo mel e nozes quando as havia.
                    
Loiças de antigamente de Coimbra, as grosseiras ditas"ratinho" e de faiança , jarro de vinho alusivo à tricana de Coimbra com xaile feito nas fábricas do Avelar
Na hora de deitar a avó levava a candeia acesa para iluminar os seus Santinhos numa de fazer companhia nas rezas intermináveis noite adentro - deitadas na camita de ferro, aquecidas entre mantas de trapos, e cobertores de papa às riscas da Guarda o pavio da candeia bêbado de azeite altivo -, pronuncio no seu dizer "não haviam trevas na casa"… fiel companheira na reza do terço -, aquela avó Maria da Luz conhecia os Santos todos, rezas e mais rezas, lengalengas: ao Anjo da Guarda, Almas do Purgatório… súplicas e preces por todos os que já tinham partido, "fulano que foi das Hortas, Pai Nosso e Ave-maria"…"sicrano que foi da Moita Redonda de Baixo, alumiai-o Nosso Senhor Jesus Cristo e todos os Santos" horas a fio até dar volta ao rol de falecidos na família, amigos, e conhecidos, às tantas bocejava com sonito, cansada mas educada levantava a voz, dizia-lhe "vozinha rezámos por esse e por aquele e mais o tal e, ainda -, já rezámos por eles todinhos" olhava para mim surpresa fazendo fé no meu falar - no repente digo eu - acharia que estava muito dedicada às suas rezas, será que estaria (?) o pior a sua beatice, queria que eu aprendesse todas as ladainhas e rezas que sabia.
A avó fazia sabão…
Boas lembranças de a ver ir ao fundo da talha tirar uma remeia (no seu falar), no meu uma malga cheia de borra de azeite +- 1 Kg que derretia ao lume na panela de ferro e noutra punha +- 2,5 Lt de água a ferver com 6 malgas pequenas +- 2,5 Kg de cinza branca de vides ou de oliveira -, no seu dizer a melhor sem carvões que depois de assente coava a água que juntava com as borras de azeite quentes.Misturava tudo bem com 250 Gr de de soda caústica, pozinhos que comprava na farmácia e mexia com um pau até se despegar do fundo que depois o queimava.O sabão ficava com aspeto de uma bola que na tripeça, a mesa de três pés o moldava numa lata velha, aq sua barra de sabão. No dia seguinte tirava-a da lata e punha-a ao sol a secar. Ficava assim de um dia para o outro.Usava este sabão para fazer a barrela no alguidar para a roupa de linho que naquele tempo se encardi muito, depois corava sobre a relva ao sol para ser novamente enxaguada na água corrente do ribeiro. Seca ao sol na ribanceira do leirão, ficava branquinha. Sim, porque naquele tempo as mulheres eram muito asseadas com a roupa da casa. Dizia ela que este sabão não dava para lavar a roupa de lã nem preta, nesta via-a misturar na água ao enxaguar vinagre, para não perder a cor.A cinza tem um alto poder branqueador.Para clarear os lençóis e as toalhas as punha de molho em barrela ensaboadas com   cinzas, no dia seguinte lavadas normalmente .
Lembranças de ver os ofícios irem a casa do freguês
Fosse a costureira que levava a cabeça da máquina no alforge do burro ou numa cesta à cabeça e ficava na casa do freguês até acabar as encomendas.


Formas
Ti Medeiros era sapateiro
Uma história passada na Moita Redonda com um aprendiz de sapateiro, os primeiros sapatos fê-los para a avó Joaquina - "velha escarnienta" diz à filha que era a mãe do rapaz com tom irónico "oh Maria, os sapatitos que o teu filho me fez ficaram apertaditos, apertaditos…", indignada a filha a ouvir tal funesto reparo da mãe a dizer mal da obra do filho, responde-lhe "apertaditos? Sabe a minha mãe quem lhe fazia uns sapatos mesmo à medida do seu pé -, o ferrador da Mó…" a pobre velha sonsa, pergunta à avó do meu marido " oh Rosa a minha Maria diz que há um ferrador na Mó que faz sapatos mesmo à medida do meu pé, como uma luva" responde-lhe a Rosa" oh mulher, a sua Maria quis atenta-la, atão o ferrador põe ferraduras mas é nos burros…" 
A Ti Joaquina tecedeira, fazia mantas de trapos, tecia o linho e a estopa, a seguir à sua casita havia uma casa de duas janelas e uma porta com escada de pedra e varandim em madeira da Ti Maria que vivia com a filha Augusta, orgulhosa dizia-lhe em relação aos rapazes, "Augusta minha filha, tu és uma broa inteira". Naquele tempo de pobreza - a filha bordava, quem havia de dizer ostentavam na frontaria o emblema da companhia de seguros - Mundial Confiança. Escarnientos e mordazes em atazanar os vizinhos só pensavam no mal, os irmãos da minha mãe - Carlos e o Alberto - um dia resolvem pregar-lhes um susto, fizeram uma fogueira no leirão atrás da sua casa, naquilo ouviram a Ti Maria dizer para a filha "Deus nos acuda Augusta que lá se vai a nossa manica"… (ao que parece a casa para elas não tinha interesse, apesar de estar segura, só a manica aos olhos da velha mulher, o sustento delas…).

Naquele tempo o barbeiro que além de cortar o cabelo também arrancava dentes. 

A morte da avó Maria da Luz …Ocorreu aos 79 anos de doença cancerosa - quis o destino que o quadro "Anúncio da Morte" saísse em sortes à minha mãe na herança -, no trajeto da aldeia até à nossa casa idealizei o seu fim, nem chegou a entrar em casa, todos os pertences ficaram no patim à porta da cozinha para a minha mãe fazer escolhas, logo o tirei do monte, sem que se apercebesse destruí-o com os pés, partido em mil bocadinhos enterrados junto ao pé da oliveira milenar no quintal juntamente com o facalhão de matar os porcos - não fosse o meu pai usa-lo num dia de maus instintos…no terreiro da casa jaz hoje um monte imensurável de escombros, mas para mim perduram as boas Memórias! 
Deitadas numa cama igualzinha a esta... Horror sentia eu com o quadro na parede, encenação macabra do "Anúncio da Morte"
Moribundo prostrado em cama de ferro agonizava, sobre ele o Diabo com cornos disfarçado de morcego voava para o levar envolto nas grandes asas de morcego vermelhas e o tridente numa das mãos...sentia medo medonho ao olhar para aquele quadro, um medo sem igual.
Saudades de espaços e pessoas da Mouta Redonda
No verão regalava-me a abafar calores no ribeiro em queda abrupta das faldas da Nexebra junto de umas figueiras enfezadas que ladeavam o pequeno lago com açude em pedras alvas onde mulheres lavavam a roupa - lajes carregadas no dorso do burro do Ti Mateus da serra Branca, da Ovelha ou Anjo da Guarda, porque aqui na represa - aqui neste lugar - precisamente, irrompe o xisto… Adorava brincar com ramitos de loureiro a vergastar ondas teimosas que caiam e molhavam o meu vestido e os pezitos na grande a pia de pedra onde o macho e a mula bebiam água na entrada do carreiro da casa dos avós.
Regalava-me com as colmeias que eram cortiços em fila no rebordo do muro de xisto da eira feitos em cortiça - a avó já não tratava delas, ainda assim as abelhas andavam a sarilhar à sua roda, eu delas fugia antes que alguma me desse uma ferroada, quando acontecia -, vinagre e faca em cima com força até sair o ferrão. A minha mãe trouxe um cortiço novo da Moita Redonda para nossa casa, durante anos foi o nosso cesto da roupa suja, viveu anos atrás da porta da casa de banho até ser substituído por um novo em verga moderno…hoje, continua a viver na casa rural a perpetuar tempos idos. De manhã gostava de calcorrear os leirões abaixo e acima ao lado de levadas de água que vinham das minas para o regadio das sementeiras - ouvir o chilrear dos passarinhos, sentir a frescura e os cheiros no ar. 

Bom recordar a casa da Ti "Rosa da quelha"… gostava de me sentar na arca da sala com as pernitas a cercilhar enquanto as mulheres sentadas nas cadeiras na roda da mesa rezavam o terço depois de alumiada com azeite a Nossa Senhora de Fátima na sombra o relógio assente na mísula de madeira feita pelo filho - o meu sogro Fernando Coimbra, o malandro não se fazia rogado a interromper o ritual das "beatas" ao dar as badaladas -, mulheres devotas da doutrina da igreja e dos seus mandamentos, eu ria baixinho, este culto do pedido do Terço todos os Santos dias na hora da sesta, há vez, ora em casa da minha avó, ora na casa da sua comadre "Rosa da quelha". 

Boas lembranças também da casa Maria Medeiros, do marido Silvério e do filho Carlos a morar por Lisboa, um dia apareceram com o seu carro novo. O Silvério de carta recente numa idade madura, inexperiente para fazer manobras, a tentar pô-lo na garagem por baixo da casa, num instante o carro resvala na manobra de marcha atrás e se enfia no ribeiro, só de lá saiu a força de braços, dos meus também. 

Da casa do Ti António Veríssimo e da mulher Albertina no Fojo, tantas vezes passei à sua porta, andava ela de volta da roupa no poço do Carvalhal ou das galinhas na Cabreira, o Ti António de volta do "burro" a cortar madeira ou no quintal. Os filhos: Ermelinda, José, Acácio e João, são dum tempo em que pais e filhos abeirados na roda do lume comiam da bacia as couves aferventadas com feijões, no cimo uma sardinha para três ou um bocadito de bacalhau. 

Boas recordações do Ti Bernardino - homem solteirão, simpático a sua casita muito velha junto à estrada. Do lado do quintal ao entrar na casa a caminho da cozinha tinha uma arca a cair de velha, nela guardava pêras amarelas com pintas castanhas, a verdadeira pêra Rocha, e tomates - os seus tesouros - quando o visitava abria a arca de mão trémula, do fundo tirava uma pêra ou um tomate como se fosse a maior riqueza para me dar - mas era tal a bondade em dar com um sorriso maroto e linguarejar imperceptível pela falta de dentes. 

Falar do Ti Francisco - anos depois de ter morrido a minha mãe alcunhou " de viver no condomínio fechado" por a sua casa estar inserida num conjunto de outras na entrada da aldeia, em detrimento das demais dispersas. Durante anos aos sábados aproveitava vir à feira do gado, apanhava boleia com o João ou o irmão "Zé Mau das Hortas ",- aparecia na nossa casa de saco de serapilheira às costas com "peros pau" que apanhava no início do outono no talho do Cabo da Fazenda pertença da minha mãe. 

Não esqueço de ouvir contar a muita gente sobre o "milagre" - uma coroa de borboletas que se juntou em cima do caixão da Ti Brízida" - mulher devota, muito religiosa, no dizer do povo uma Santa, a minha bisavó materna.

Saudades de ir até Chão de Couce pelo atalho das "Calhes" no tempo as pessoas para trazer a água das minas das costeiras da Nexebra, era uso calhas em pinho pelas costeiras para encher um grande poço à beira do caminho na direção do Furadouro. 

Do Ti João do Portelinho, homem emigrado nas Américas, de onde veio abonado, regressou em finais de 30 ou inicio de 40, a minha mãe nascida em 34, lembra-se dele, trouxe uma grafonola onde punha música que se ouvia ao Vale, possivelmente os relógios que a maioria dos aldeões tinham em casa e cheguei a conhecer alguns, foram trazidos por si, talvez uns dez (?), que comprou em 2ª mão por altura da recessão nos EUA em 29; o meu avô comprou dois, o avô do meu marido outro, o Ti Bernardino, a Ti Rosa da Quelha e aqui já vão cinco.  
Relógio da Ti Rosa da quelha
Era um tempo de fome e pobreza, homem viúvo, endinheirado e bonito, a minha mãe lembra-se de virem a casa dele "mulheres a oferecer-se" para em troca receber uma maquia de farinha ou dinheiro, até que foi atrás da serra (Anjo da Guarda) buscar uma mulher "daquelas já passadas" para casar de quem teve uma filha que conheci, a Benvinda. Tinha em casa também um grande alambique onde se fazia a aguardente.

Saudades de mais gente do Augustito segundo se fez constar roubava o vinho da adega da avó Rosa do meu marido...da Josefina da Horta e,.. 

Recordo a minha avó Luz de só ter um dente - , gostava de comer papas de milho e sopas de pão duro com queijo de mistura meia cura partido aos bocadinhos amolecido na quentura da cevada. Difícil a minha mãe suportar que eu a imitasse - confesso que ainda hoje gosto duma malga de sopas de café com "olhas" do queijo do Rabaçal seco em azeite, igualzinho às sopas do café da avó.
Pequenito era o seu quintal enviesado na ribanceira do leirão, na quina a oliveira, no seu terreiro estendia-se o talho do jardim semeado de trevo com flores pálidas em rosa na frente da eira - feijocas de flor de cor carmesim salpicadas de branco e duas filas de couves-galegas, no meio o carreiro a caminho do Fojo, no rebordo da eira grande arbusto perene de flores brancas "as Lágrimas", açucenas brancas, outras debruadas a rosa, junto do curral dos coelhos a roseira de silvão em tons de cerise raiada de branco.
A seca tem dizimado o jardim
Alegria sentia eu ao ouvir no raiar do sol a corneta do carteiro ao Fojo, o som subia à crista dos outeiros, descia ao Vale suave - apesar de forte - em meio tempo ouvia a comadre Rosa em gritaria "In’ha madrinha daqui da porta parece-me ver o carteiro a subir a quelha " sinal de notícias de Angola, da Titi ou da minha mãe que abusava nas férias no envio de mimos que a avó guardava na pequena arca do seu quarto. À solapa gostava de espreitar e surripiar qualquer coisinha até ao dia que fui apanhada, ouvi ralhos e não escapei do castigo…inverno, a noite caia cedo, obrigou-me a ir ao casebre buscar lenha para o lume. Assustada pelo alto rebate de xisto da porta abaixo do nível da casa naquela hora parecia maior, ou eram as minhas pernitas a tremer que não o conseguiam subir, na soleira da porta só enxergava uma escuridão e o barulho do vento a bailar nos altos ramos dos eucaliptos. Corajosa, enchi o peito de ar, fui a rezar naquela de partilhar ajuda orava "Jesus vai comigo, eu vou com Jesus" por apalpação trouxe gravetos de pinho!

Continuar a falar de outros relógios…
Interessante num tempo de pobreza a maioria dos homens da aldeia de Moita Redonda já possuía um relógio de bolso com corrente em prata e ponteiros em oiro como o do avô do meu marido - António Veríssimo uma herança que nos contemplou – outros tinham maiores – "relógio cebola "como o do tio Bernardino que ofertou ao José Manuel Ribeiro meu cunhado, apesar de estragado. Estes relógios só os usavam ao domingo ou em dias especiais.Para trabalhar fora de portas orientavam-se pela bússola com relógio de sol.
Caixinha de madeira, encontrei a do avô do meu marido Veríssimo no ribeiro deitada fora pela minha sogra depois de este ter falecido. Agora naquele tempo possuir um relógio de sala, era um luxo. Tinha passado pela aldeia um homem que os vendia em segunda mão no início da década de 1930 trazidos da América após a recessão de 29, em que as pessoas se desfizeram deles para sobreviver.
1ª foto na Serra Janeanes, Sicó a 2ª em 2012 no aniversário da minha mãe no hotel Miramar
As semelhanças entre a minha mãe e esta senhora são muitas  a revelar ascendência de judeus asquenazes... A minha mãe herdou a cor dos olhos verdes e os cabelos loiros do pai.

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