quarta-feira, 28 de maio de 2014

Recordar o meu tempo de cachopa em Ansião

Dar azo ao meu empolgante vício de escrever memórias! 
Irrompia o estridente sinal sonoro do telefone na voz forte o sotaque ribatejano do negociante apressado -, mal o atendia deixava o auscultador na mesinha, para em corrida galopante correr a caminho da casa do Ti Raul Borges, angariador de lã de ovelha aos sábados no mercado de Ansião. O ajuste do negócio de parcas palavras com a marcação do dia para o transporte. Ao longo de anos assisti à chegada de camionetas ao Largo do Bairro, na antiga casa onde viveu um cesteiro de Barcelos, o Ti Paulino com a neta Rosalina, rapariga espigadota, andou comigo na escola. O avô pensa voltar a Barcelos e vendeu a casa ao Ti Raul Borges  a passou a usar para armazém. Os fardos de lã eram descomunais, no ar ficava um cheio intenso a cebum, no tempo só as mulheres dos Anacos, Pinheiro e Poios levavam o rebanho ao banho aos Mouchões do Nabão, pois eram já mulheres de visão -, porque a lã branca, sem cheiro era paga a melhor preço...Julgo tantos anos passados a casa ainda guarda o fiel cheiro...
O Ti Raul, só anos mais tarde mandou instalar um telefone não sei porquê ficou no r/c em  vez de ser na casa no sobrado, o ensinei a manusear. Nunca me ofereceu nada de nada pelo trabalho de o chamar e levar a casa para atender os telefonemas e a mulher Ti Maria vendia-me meio alqueire de batatas e quando precisava de um limão ia busca-lo ao limoeiro encostado ao muro, jamais se esquecia de se fazer pagar de 2$50, moeda que nunca recusou…e prenda de casamento não me lembro, julgo que nada deram!
Lembranças do pregão do cauteleiro vestido de boné na cabeça mais parecia um policial, e de um lençol de cautelas nas mãos, ao tempo vivia ao Ribeiro da Vide junto da casa dos velhos "Trinta". Das filhas lembro-me vagamente, uma delas tinha problemas cognitivos , ao tempo internada em Condeixa. O pai chegou a ter uma casa de utilidades e vidros na vila, de paredes meias com a casa do Sr. Oliveira, que viria a trespassar até abalar de malas e bagagens em definitivo para o Avelar… 
Ao tempo havia barulhos caraterísticos que mal suados ao ouvido já se sabia quem vinha ao caminho-, assim era o trepidar no alcatrão dos cascos do belo macho do Sr. Armando Coutinho do Cimo da Rua, também da mula do Ti Zé André e a do Ti Raul Borges, do atroador ruído nas pedras da junta de bois do Zé Serra ou do Fernando Lucas dos Escampados, a caminho do Ribeiro de Albarrol, também as rodas de ferro das carroças da burra "Gerica" da tia Maria e do burro da Ti Virgínia André
As nossas brincadeiras de cachopos a pensar em namoricos, comecei muito cedo, teria quatro anitos, assim o contava a minha avó materna à minha mãe… "oh filha a Belita disse-me, vovó eu bosto muito dele"-, seria do meu vizinho Chico Borges? Rapaz tímido, trabalhador, difícil conhecer outro assim igual da lavoura conhecia todos os ritos e preceitos e do trato da mula também. Por não ter outro entretêm houve horas que passei tempos a espreita-lo através dos buraquinhos da persiana por causa da poeira levantada na eira onde passava horas infindáveis em cima da mula a pisar o trigo e o centeio, lindo o jeito de lhe assobiar para beber água na pia de pedra logo pela manhã. O bom do Chico sempre a trabalhar nas fazendas, rapaz de parcas palavras, mas de humor sórdido, um dia numa brincadeira apanhei uma folha gémea de oliveira, ao dividi-la com ele proferíamos um desejo, virou-se para mim e disse - "hoje levas porrada do teu pai" azar ou coincidência levei mesmo. Nas descamisadas quando aparecia o milho rei, nem a cor vermelha da espiga o fazia sorrir, de cariz apagado para o triste, síndrome do signo Peixes, finalmente um dia preocupado com os 4 pontos no meu dedo indicador, cozidos pela mão do Dr. Travassos, ainda se nota a marca, tudo por causa do grande encontrão que me deu na vindima do seu quintal. Trocávamos livros de estudo. Recatado comigo foi sempre o Chico. Infelizmente o destino não lhe foi favorável, deixou-nos muito cedo nesta vida!
Pela manhã o prazer de ouvir os pregões da peixeira Zulmira, com o seu carrinho de madeira e balança de pratos em lata -, paragem certa no caminho da minha casa, trazia bom peixe que encomendava ao filho nos Riachos todas as semanas nos Correios, onde ia fazer a encomenda pelo telefone. Só vendia boa pescada, pargo, goraz, peixe graúdo o que a minha mãe lhe comprava, a primeira vez que comi chicharro e carapaus foi no Colégio Religioso no Monte Estoril e peixe-espada já casada. O peixe era amanhado à beira da estrada, à roda dela vinham ao cheiro a gataria que se deliciava com as guelras, na bacia trazia sempre os pesos cheios de escamas e jamais se esquecia da cabeça do peixe no contrapeso ... Os cunhados também peixeiros-, o Ti Amadeu e a mulher Maria José, a eles a minha mãe comprava-lhes ao sábado na praça do peixe a sardinha. O Ti Amadeu era um homem grande de estatura e de veia musical com lugar marcado na filarmónica Santa Cecília, eram só dele os pratos de latão presos nas mãos com correias de cabedal. Imponente o som que se fazia sentir quando os batia, tinha uma força que os meus ouvidos até estalavam…
Gratificante naquele tempo o prazer de estrear roupa. No despontar da adolescência a recordação de um vestido em lycra em tecido relevado que a minha tia Rosária mandou numa encomenda de Luanda. O que eu brilhei quando o estreei, pela silhueta elegante  e pelas cores quentes de África em laranja com remates finos em castanho brutalmente curto, decotado e justo, confecionado pela D. Lucinda do Fundo da Rua, por causa do decote e da decência usei fina camisola preta de gola alta, para arrasar à saída da missa, desse tempo recordo lembranças do Mário Borracheiro, a comentar com outros "a Bela está uma bela rapariga..."
Salutar o convívio dos jovens aos domingos no final da missa. Santas e boas lembranças de soltar a língua, saber as novidades na conversa fiada ao adro da igreja e ao mesmo tempo ver "as modas" apreciar rapazes, porque as raparigas comprometidas não paravam de mexer nos cabelos para mostrar os anéis de noivado. Havia jovens bonitos, gente simples e honesta, rapazes e raparigas , incríveis os sorrisos, os olhares marotos com vontade de namorar, havia raparigas armadas em não dar confiança, faziam-se "caras" mas mortinhas para dar trela. Defronte do portão da igreja no rebate do lancil as vendedeiras de tremoços do Mogadouro e Vale de Avessada. Havia gente que comprava uma medida ou duas e sem vergonha os trincavam e logo cuspiam as cascas com desdém para o chão. Avisada estava eu, não esquecer de levar o jornal comprado na casa do Jaime Paz, na porta entreaberta de vidros a resma de jornais em cima de uma cadeira esperavam comprador para o "1º de Janeiro". O meu pai também tinha domingos que gostava de ler o Século que se comprava no Fundo da Rua. Nunca esqueci uma capa da revista do " Século Ilustrado " com a Amália Rodrigues na sua casa do Brejão junto da piscina, envergava lindo traje árabe castanho comprido, rasgado de lado, bastante pronunciado e debruado a rendas brancas. Ao desfolhar a revista havia fotos do Brejão da sua casa de férias sobranceira na falésia do monte alentejano com vista desimpedida para o oceano, numa ponta junto de uma azenha as escadinhas íngremes de acesso privativo à sua praia perdida naquela vastidão de mar azul, sonho que jamais esqueci até ao dia que atrevida me aventurei e quis conhecer quando a minha filha iniciou a vida profissional em Odemira, a vontade de conhecer a casa da Amália. Sem sinalética, apenas uma margarida grande em ferro pintada de azul e amarelo, o mote de seguir o caminho de terra batida. Nessa altura em 2007 no local encontrei uma tela velha no lixo amontoado, e sem dar ouvidos a contra argumentos dos que me acompanhavam, teimosa a trouxe a cair de velha que teimei restaurar ao meu jeito! Voltei outro dia e encontrei outra...
Trouxe os quadros dei-lhes restauro e aí estão...
Mal a missa finada dispersavam-se as pessoas a caminho das suas casas, também tinha de ir sem demoras, senão o almoço arrefecia…Desde que me conheço gosto de estabelecer conversa com qualquer pessoa, conhecida ou anónima. A minha mãe gritava por mim quando me perdia horas a conversar que se ouvia à vila -, boas conversas com o Ti Zé André, Zé Emídio, Toino Tarouca, a Lala, fosse com quem fosse...Havia parco trabalho para as gentes de Ansião, algumas se valiam das safras sazonais na ceifa, apanha da azeitona e nas vindimas, assisti algumas vezes à azáfama de gente de volta do capataz para os contratar. No dia agendado e na hora marcada os voltava a ver abeirados na estrada na espera de transporte, no chão tinham pequenas arcas de madeira com o avio de roupa, a bacia de faiança, os talheres, chouriças, toucinho, feijões secos e batatas. Porque na alma sentia levarem a esperança de trazer na volta o bolso cheio para o sustento no inverno. Uma vez vinha eu a caminho de casa ao Ribeiro da Vide quando a furgoneta descarregou pessoal -, a "Silvina do Pau Preto" e o Abílio do Carvalhal -, homem alto, fanfarrão e orgulhoso com o seu pão de mais de dois quilos, dizia ele para mim " oh cachopa sabias que este pão dura uma semana?" E apesar do sol que se fazia sentir, num ato destemido de vaidade abre o grande chapéu-de-chuva em pano azul, para eu ver como era grande, até ao dia que partiu para mais uma campanha da ceifa e não mais voltou, faleceu ou foi morto pelo Alentejo…
Em tenra idade aprendi com o meu pai a manusear uma arma de fogo. Em família fomos no táxi do Virgílio Valente, a Coimbra, para comprar a espingarda de canos serrados de calibre dezasseis num armeiro numa ruela estreita da baixa juntamente com os apetrechos. Arma elegante com a cunha em raiz de nogueira que gostava de limpar com os escovilhões e nunca faltava a vareta de flanela no final, depois o certo seria pendura-la pela correia de cabedal. O nosso pai gostava de nos ensinar na loja (nome dado à cave só com frente que servia de adega e arrumos) ao tempo havia uma escada de madeira que fazia a ligação com a casa, o que era confortável e tinha luz elétrica sobre a bancada onde eu e a minha irmã, cada uma fazia a sua tarefa em encher os cartuchos com a dosagem certa de pólvora, chumbo e serradura, por fim eram comprimidos com tampinhas na máquina para hermeticamente ficarem fechados. Um regalo encher a cartucheira. Tanto eu como a minha irmã sempre tivemos muito respeito pela arma de fogo! 
Ao cair da tarde depois do trabalho no Tribunal , o nosso pai convidava-nos para uma suposta caçada. Em caminhada no rumo do quelho do Vale Mosteiro, ao lado da casa do Ti António Moreira, defronte da quinta do Calado e da Monteira da Helena e da sua tia Piedade, para no largo do barrocal cársico de águas paradas se subir ao pinhal, onde o cão perdigueiro Kaiser se perdia a farejar a carqueja. Grande era a preocupação em nos transmitir as regras de segurança, até porque ele, quando jovem tinha sofrido um acidente com uma arma que lhe levou o dedo indicador da mão direita. Quanto à caça propriamente dita, não me lembro de ver nada pendurado ao cinturão da cartucheira, o tempo de nos abrigarmos em segurança junto a um pinheiro  para ele atirar já " o senhor tordo voava ligeiro a caminho do Carvalhal do Bairro"… 
Nunca dei um tiro sinto repulsa em "matar" a primeira vez que me vi obrigada a fazê-lo foi um suplício para mostrar que não era medricas ... Ao meio da tarde na conversa ao muro da minha casa com o adro com a minha irmã, o Carlos Cotrim e o Luís Lucas, toca o telefone, era a minha mãe a mandar fazer o farnel para sairmos de madrugada o caminho da feira de S. João,em Badajoz.
Transmitia à  minha irmã o recado e logo se vira para mim  dando ordem para matar um frango e um coelho, a que respondo que não sou capaz por nunca o ter feito e me dar dó matar animais -, provocadora  e sarcástica na frente dos rapazes, lança o mote "é assim que queres arranjar namorado e casar?" Envergonhada, mas corajosa encaminhei-me para a capoeira onde apanhei um frango branco, dos grandes, entalei -o nas minhas pernas, virei-lhe o pescoço para cima e meti-lhe a faca de olhos fechados a tremer, o frango estrebucha de aflição deu um grande salto e desarvora sem cabeça a cambalear por entre os talos das couves-galegas deixando no rasto um mar de sangue, e claro todos a rir a boa gargalhada pela minha ineficácia...Não me deixei amolecer, em corrida o apanhei  atordoado e de faca em punho acabei tanto sofrer, depois ainda tive de limpar todo aquele cenário de massacre sob os olhares de gozo!
O meu pai faleceu em setembro de 72. Com 18 anos a minha irmã tirou com distinção a carta de condução em Coimbra com louvor do Engenheiro que a igualou à então carismática Michel Mouton participante do Rali de Portugal. A estreia foi a caminho do costume, Badajoz pelo S. João-, levantamos de madrugada com chuva torrencial, ainda assim afoitas dissemos se chegarmos a Tomar e ainda chover viemos de volta a casa... O tempo amainou, passámos Constância, Abrantes, Ponte de Sôr, Fronteira, Monforte, Caia e finalmente Badajoz, ainda só havia uma ponte que atravessava o rio Guadiana. A viagem correu muito bem a condutora estreante revelou -se uma excelente condutora, com muita segurança. Mas em Espanha não se calava queria a toda a força uma viola, contente ficou de a sentir na mão, de abalada ainda fomos aos grandes armazéns dos Preciados fazer compras por estar perdido o mercado em Ansião -, por isso o abastecimento de víveres para a semana. Aqui pela primeira distingui os legumes em cuvetes brancas cobertas com película aderente em 76. Compras aviadas na mala do carro. Por adorar novas rotas convenci a minha mãe a novo trajeto para regresso pela fronteira de Portalegre, mal chegadas à Portagem, a primeira terra portuguesa com um nome característico de fronteira (poderia ser Portela, Portelinho…) chovia torrencialmente, parado o carro debaixo do palanque a guarda-fiscal vistoriava as compras, um dizia para o colega "olha-me estas gajas virem a Espanha comprar tomates e pepinos…" 
A viola, a primeira que o Tonito Freitas (da São) nosso companheiro nas traquinices começou a tocar, mais tarde em Lisboa aprendeu, ainda fez parte de um conjunto musical,  o vi na televisão...

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