Decorria o ano de 1964 que se acabou o bem bom da brincadeira com o seu início ...
No primeiro dia fui levada pela minha mãe, ao dobrar a esquina da casa do Dr. Silveira reparei no lindo varandim com bancos de pedra implantados no mural encimados por gracioso suporte em ferro da trepadeiras -, um refúgio bucólico onde nunca vi ninguém a desfrutar de tão lindo recanto -, ao baixar o olhar dei de caras com o carro preto do Prof. Albino Simões no estacionamento privado, aqui todos os dias no mesmo sítio debaixo da árvore em cima da calçada -, certo a enorme alegria quando não o via, mais sortudos os rapazes não tinham aulas...
Aqui entrei e sai vezes sem conta |
Entrei ao portão de ferro, não me lembro se ia alegre ou feliz por ir para a escola, talvez não me sentisse muito à vontade por ser tímida, para o envergonhadito. O carreiro em terra batida até ao recreio, só de raparigas, ao fundo havia um pequeno telheiro e duas portas, entrei numa delas, ao rebate logo se abria uma sala de entrada ao lado desta outra privada, ao fundo a sala de aulas com três grandes janelas viradas a nascente para a rua principal
.
A minha mãe deixou-me com recomendações à senhora contínua D. Fernanda. Ao bater das palmas fomos entrando em fila indiana, as tábuas corridas gastas cheiravam a velho, nas paredes caiadas havia mapas de todos os tamanhos , dois grandes quadros de ardósia preta debruados a madeira e na calha paus de giz e a esponja. Em cada sala havia um fogão a lenha em ferro redondo com pezinhos, ao tempo nunca vi nenhum funcionar enquanto frequentei a escola -, estragados de canos cor de prata desencaixados.
Ao canto da sala havia uma solitária secretária, numa das gavetas guardava-se a régua grossa de madeira para aplicar os castigos aos alunos,- apanhei várias vezes, as mãos ficavam brutalmente vermelhas e dormentes. De encosto à quina da parede ao lado dos quadros jaziam de pé as canas da Índia, altas e grossas, reluzentes de ser manuseadas, cheias de nós -, tantas levei cabeça abaixo em constantes viradas de meia roda...
Na parede do quadro ao centro havia um crucifixo, ladeado por fotografias, uma do Dr. António Salazar e outra do Almirante Américo Tomás.
Na 1ª classe na sala todas pequenitas, acabrunhadas, olhar assustado, cheias de medos...seria a minha primeira Prof a D. Laura Simões -, infelizmente para mim não guardo gratas recordações, chumbou-me, com ela andei até à 2ª classe. Senhora de cariz conservador, britânica no vestir, tinha o seu quê de austera, fria e platónica. Levava nas mãos uma pasta em cabedal comprada no bazar em Coimbra em frente à vidraria do Saúl.
No ano seguinte apesar de ter chumbado estreei nova pasta estampada em plástico, moderna em tons de azul, a de cabedal ofereci às cachopas da Maria José , a " Ilhoa" do Casal das Peras -, lindas moçoilas a Amália e a gémea Eulália.
A maioria das minhas colegas usavam sacolas de chita fechadas com um botão, olhavam para mim de lado... Na pasta levava o livro de leitura, ardósia, lápis de carvão, lápis de cor e cadernos de 3$50 e 5$00, algumas colegas tiravam da sacola cadernos finos de $50.
Senti nos seus olhares a tristeza de não terem cadernos iguais aos meus, o que fez nascer em mim uma incrível vontade de as ajudar. A ideia surgiu na minha cabeça, logo a pus em marcha, rebuscar os bolsos dos casacos do meu pai enquanto dormia -, sempre encontrei moedas e com elas comprei cadernos iguais aos meus na papelaria da D. Arminda em frente ao Correio velho, também cheguei a pagar a quota do rádio escolar a um ou dois, tal a insistência do Prof. Albino Simões,semanalmente fartava-se de chamar a atenção a alguns, pelo incumprimento.
Tenho a sensação de que nunca me disseram obrigado..."sorte a minha que também não me lembro mais dos seus nomes".
Um dia a turma mista, não me lembro mais se o seria, ou por falta do marido juntou as turmas, o Nuno filho do Dr. Juiz chamado ao quadro e assustado com a voz altiva da Professora perdeu o controlo e num descuido urinou-se pernas abaixo...o pleonasmo é obrigatório para dar ênfase ao sucedido -, lindos calções aos quadradinhos repassados, pior o lago aos pés no chão da sala... imagem deprimente que permaneceu na minha cabeça durante anos a fio.
Não era permitido ir à casa de banho fora do intervalo das onze horas. As carteiras de madeira e banco de ripas, ainda se fazia uso da tábua em ardósia para fazer contas, sempre pronta a utilizar depois de passar o trapo de pano que se pendurava num suporte em viés pregado abaixo do tampo. O que me marcou mais-, o temor, assustada e nervosa também ficava com vontade de ir à casa de banho, a Professora recusava, quando não aguentava mais a pressão, fazia chichi aos pinguinhos no banco, e com o trapo da ardósia limpava, tal memória afetou-me, apesar de sozinha ter aprendido a desenrascar-me.
Reconheço que na altura tinha alguma dificuldade de aprendizagem tal qual alguns cérebros que reza a história - seria o método conservador, rígido, implacável envolto em medos, sei que nunca fui capaz de aprender a raciocinar, a refletir, a pensar .
Em casa o ambiente também não era nada acolhedor, não abonava a favor, pouco aplicada nos estudos por falta de incitação.Um dia estava à lareira com o meu pai quis testar se fazia contas na 1ª classe, não fui capaz, enervou-se, deu-me uma bofetada, rebolei fiquei entalada debaixo do suporte do fogão de esmalte branco tipo mesinha.
A única mensagem de valor que me recordo do meu pai -, a sua preocupação em não tirar nada a ninguém, quando se lembrava de rebuscar a pasta e via alguma coisa que sabia não ser minha, obrigava-me a ir de imediato entregar. Passei autênticas vergonhas, serviu-me de lição.Detestava o sanitário de cheiro nauseabundo, inóspito, escuso, deprimente, tosco em cimento, sem autoclismo, ao fundo do recreio com porta de madeira sem janela, trinco relaxado, um buraco. Até a contínua D. Fernanda tinha um semblante austero e imponente na sua bata azul, mais parecia uma guarda republicana, só lhe faltava o cinturão com o crachá, seria por não sorrir? Por isso talvez a semelhança!
Posto que ao tempo funcionava neste solar no 1º andar , sendo que no r/c ao portão era a oficina de irmãos que tratavam de bicicletas...
Os recreios…
Havia o das meninas e dos meninos, ao tempo separados por muro alto e uma porta, eram de terra batida. Faziam a delícia das muitas brincadeiras e dos jogos.
Os rapazes brincavam à Barra.
As raparigas: Saltar ao Elástico; Jogar à Parda; Reis e Rainhas; Macaca; Cabra Cega; Saltar à Corda; Jogar ao Lenço e muitos outros.
No alpendre baloiçávamos nos pilares de madeira para deslumbre de ver quem tinha a renda da combinação mais bonita, a da Inês filha do Dr. Juiz em bordado inglês...As aulas terminavam às 3,30. Aos portões os cachopos dividiam-se em direções diferentes a caminho de casa: Além da Ponte; Moinho das Moitas; Salgueiro; Casal S. Braz; das Sousas; Casal Viegas; Empiados; Carrascoso; Garriasa; Cimo da Rua; Casal das Peras; Escampados; Bairro de Santo António; Carvalhal; Pinhal...a minha comandita parava na mercearia do Carlos Antunes para comprar rebuçados com a mania das cadernetas de cromos que muitos de nós gostávamos de fazer, os rapazes faziam a dos jogadores de futebol. Ainda se compravam pastilhas em feitio de moedas douradas, pela estrada acima a desembrulhar papelinhos em grupo, uns inocentes a cantarolar ...quando aparecia o arco-íris, entoávamos a cantilena: " A chover e a fazer sol, as bruxas em Albarrol a fazerem uma camisa para o compadre caracol"…No tempo invernal a bem dizer ia de outubro a maio com temperaturas negativas durante a noite e geada de manhãzinha, ao sair à porta da cozinha, o quintal, o adro da capela, tudo o que a minha vista alcançasse era um infinito manto branco, a água do tanque dura, tal a grossura da capa de gelo...adorava pressentir os estalitos da geada a quebrarem debaixo dos meus pés na ida à padaria dos avós buscar o pão quentinho, ia e vinha pulando nas mesmas pegadas que repetia de novo a caminho da escola para poupar as botitas de cabedal. Dias de chuva a somar a semanas de intempérie, trovões e relâmpagos sem um aconchego na escola. Ao chegar à fonte do Ribeiro da Vide de olho na minha casa em primeira linha, da alta chaminé saia fumo indiciava que a minha mãe antes de ir trabalhar o deixara aceso, muitas vezes a cozer "feijão da velha" enchidos, e ossos do espinhaço para roer e chupar presos nas mãos ao jantar, na cama da cinza quente amornava o café de cevada acabadinho de fazer, na bancada a costeleta de porco com sal para grelhar no brasido...que cheirinho e sabor da boa carne de porco…
Quem também não me deixou alegrias na escola? A Prof. Armanda Oliveira, senhora altiva de colo esbelto, cabelo estufado, vestia lindas meias de vidro que lhe conferiam umas pernas de invejar. Senhora de cariz austero passava quase todo o tempo à janela a olhar, seria a pensar ou sonhar...
Vá lá saber-se o seu pensar de encosto à cana-da-índia verdejava num rodopio pelas cabeças das alunas. De tanto me puxar as orelhas ,que rasgou ,- então não usava os brincos pesados de oiro branco da minha mãe, ainda hoje tenho lembranças desse triste passado quando amiúde perco brincos, tal o tamanho do rasgo …
Dúvidas que não via esclarecidas…Adorava atazanar a minha mãe todos os santos dias na porta da cozinha -, caso de me querer bater poder fugir -, lia num tom muito alto o texto do livro da 3ª classe "enquanto a bichana dormia" por desconhecer que assim se chamava à gatinha, termo ouvido no ar associado a malandrice em conversas de intimidades nas noites de inverno ao lume entre os meus pais e amigos ,entre eles, o Albertino e o irmão Emídio Murtinho na altura solteiros deslumbrados com as raparigas bonitas vindas trabalhar para a fábrica…de ouvir dizer ao meu pai que a mioleira fazia muito bem à inteligência e, por não a comerem alguns…"eram burros todos os dias" dizia ele também que a doutrina obrigava a decorar umas " porras, as bem-aventuranças, não percebia para o que serviam"…
Meu colega de escola…fulgor ainda hoje de ter sido colega do meu bom amigo Dr. Manuel Dias do Lugar de Manguinhas na vereda entre o Casal de S. Brás e o Viegas, por várias vezes lado a lado (aos Sábados de manhã, na rádio escolar!) .Ele foi sempre aluno do Prof. Albino Simões ao tempo Presidente da Câmara. Quando ele faltava iam todos para a D.ª Laura a minha Professora, que não gostava muito dele chamava-lhe o "mimo do caco!". O marido, ao contrário, adorava-me (salvo seja!) os seus colegas levavam tareia de meia-noite (ele partiu sei lá quantas réguas de metro no corpo daqueles mártires; quando não sabiam as contas agarrava-os em peso pelas orelhas e batia-lhes várias vezes com a cabeça nos quadros de lousa, talvez "pensando" que assim as regras matemáticas entrassem melhor no cérebro dos seus alunos; outras vezes dava-lhes tamanha chapada, que com a mão esquerda tinha que parar o impacto do castigo, se não os alunos até voavam para o outro lado da sala!
No caso, o bom Manel ao contrário, recebia 1 tostão e 2 tostões para ir ao Alberto Melado comprar rebuçados para ele, como prémio das suas contas sempre bem feitas, das leituras e escritas sempre modelares. Assim, ele chupava rebuçados e os outros tanta tareia, o que o incomodava profundamente. Talvez por se dizer bem dele à esposa (que era professora das suas irmãs e elas tinham dificuldades na aprendizagem), é que ela o titulava assim, quando o via, pelas mãos de sua mãe.
Ao sábado de manhã ...ouvia-se o rádio escolar na sala dos rapazes, uma perdição partilhar a sala naqueles instantes... havia um lindo rapaz de olhar lânguido em verde quão lago de nenúfares a raiar ao sol... não parei nem descansei enquanto não descobri o nome dele completo - António Manuel ..... para jogar o "Pancaios"... jogo singelo depois de subtraídas as letras iguais do meu e do nome dele, as restantes contavam-se... ao resultado aplicava-se a tabela da frase chave:
P -Paixão; A -Amizade ; N -Namoro; C -Casamento; A -Amor; I -Inveja; O-Ódio; S -Simpatia.
Brincadeiras de cachopos a pensar em namoricos.... Lembrança nunca esquece
Foto com a turma e a professora, sou a segunda a contar da esquerda.
Episódio passado na 4ª classe com a Professora vinda de fora -, Maria do Nascimento que entendeu não me propor a exame, disse-mo numa 6ª feira. Mal chegada a casa não me contive e contei ao meu pai que destroçado com o segundo chumbo, tentou abrandar a minha tristeza confortou-me " na segunda-feira vou falar com a Professora pedir-lhe para te propor a exame" prometido devido foi comigo, porém nada havia a fazer, já tinha sido enviada a listagem com os nomes das alunas para Leiria, desculpa esfarrapada da Professora sem antes desafiar no conselho o meu pai que eu deveria acompanhar as colegas nas revisões suplementares que iria fazer . Gesto que acedi. As explicações decorreram a céu aberto no jardim do solar da D. Maria Amélia Rego junto ao lago, sentadas num banco em pedra circular junto da pérgula ladeada de trepadeiras. A perpetuar esse momento a foto na Mata Municipal, abraçadas com a Professora ao meio, Augusta Murtinho, "Irene dos Burros", Alice Tomé, Fátima e Lucília do Casal S. Brás numa clareira de seculares carvalhos.
Jamais esqueci as palavras da Professora! " Isabel sinto muita pena de não a ter proposto a exame, afinal a menina está bem mais preparada do que as suas colegas"…
Sendo por natureza tímida, reservada, corava por tudo e por nada, não falava, ficava quietinha no meu canto, foi preciso crescer para sentir o peso da perda, da derrota na minha vida e com isso tenha desabrochado -, acabei por revelar um saber que antes nunca o tinha assim conseguido!
Sinto uma nostalgia em reconhecer que nunca fui compreendida, acompanhada devidamente, nunca nenhuma professora soube despertar em mim a vontade e o gosto de aprender, esse dom maior que é o prazer de saber, percalço maior que resultou de forma negativa na minha caminhada académica.
Todas as Professoras que me acompanharam durante seis anos - tempo que durou a minha primária, revelavam temperamentos muito autoritários, discursos de distância, frios na sua relação com os alunos, - inevitavelmente comigo.
Também em nada ajudou a rotina de fazer os trabalhos de casa, a minha mãe fazia-os por mim - o grande erro, na vez de me ensinar a estudar, a perceber, desajudou na minha escolaridade que continuou no colégio nas disciplinas de francês e inglês.Ainda se diz que é uma mais-valia os pais ter estudos para ajudar os filhos, será que concordo? Não fez por mal, uma boa forma de colmatar o tempo vazio nas noites de turno no Correio velho. Adorava fazer as redações, assim chamadas na altura.
O que os genes nos transmitiram? O prazer da escrita na mesma feição, sentimental - também à minha filha, porque a minha irmã, saiu ao meu pai mais dada à poesia , no seu tempo de menina e moça comprou um livro de razão usado nas mercearias para apontar as dívidas da clientela,onde escreveu os seus versos, sorte que o guardei…contudo tinha uma caixa de madeira esculpida em retângulo - julgo foi da prima Júlia – viveu com ela anos até se estragar, onde guardava segredos. Gosta de caixas, gosta!
O que aprendi na escola? Pouco, francamente lamento dizer que o mal foi para mim - sem bases, os estudos ficaram pela metade, poderia se quisesse, mas não me apetece estudar, gosto mais de conversar…
Foram seis anos. Infelizmente para mim chumbei na 1ª e 4ª classe.
Conheci as quatro salas, todas diferentes, todas iguais!