Páscoa na segunda vez de volta a casa na despedida chega o meu avô paterno aflito com lamentos a mulher não lhe fazia a comida e a que fazia era salgada sempre assediar para lhe deixar o resto dos bens..O avô falava de coração aberto como antes nunca tinha visto a tentar alertar e convencer o meu pai "Fernando, amanhã vais comigo ao notário quero deixar-te a minha folha…" justificando os porquês e ainda pedindo desculpas de erros do passado ao filho... Desligado de heranças o meu pai desvalorizou e descansou-o para não se preocupar, não havia de ser nada de cuidado para se ir embora para casa e descansar... Mal solto o trinco da fechadura da cozinha levantava-se a mulher do rebate onde ouviu a conversa... Fim de férias. Acabara de chegar ao Monte Estoril quando recebi a notícia que ele tinha falecido de ataque cardíaco…Deus acabou por simplificar as coisas para todos.
Romaria a Fátima…A 12 de maio de 72 fomos de excursão para assistir à Procissão das Velas no Santuário.De noite sentadas no chão, colegas e Irmãs, um cenário místico.No dia seguinte, dia treze, descobri o meu pai junto à Capelinha das Aparições cuja silhueta se destacava dos demais pela altura, vestia fato escuro e óculos Ray Ban de lentes verdes e aros dourados, procurava por mim e eu por ele. Dia de boas recordações em Fátima. Pior foi ter de dormir no autocarro...Emoções sentidas ao ver a imagem de Nossa Senhora e dos Pastorinhos.
Dilema, avisos, recados…Sempre a mesma coisa, antes do jantar na escadaria do grande hall de ligação aos dois edifícios do Colégio onde se fazia a entrega da correspondência às alunas. Que culpa tinha eu da minha mãe trabalhar numa estação de Correios, escrever todas as semanas, ainda me mandar encomendas e dinheiro? A Irmã incitava-me a escrever a explicar que as outras meninas nada recebiam dos pais, ficavam tristes por eu receber tantas coisas, todas as semanas, enquanto elas pouco, ou nada recebiam...
Grande era a festa com a abertura das encomendas. No meu aniversário de 15 primaveras a encomenda era enorme.Um belo vestido em popelina estampada em tons azuis, brancos e castanhos, feito pela D. Lucinda do Fundo da Rua, um par de patins vermelhos que o meu pai foi de propósito de táxi no Germano Pires a Coimbra comprar, bombons e tabletes de chocolate, rebuçados, miniaturas de vinho do Porto, dois queijos do Rabaçal e,...Distribui guloseimas e degustámos um queijo delicioso a derreter manteiga feito pela prima Albertina do Escampado Belchior, que adoraram deliciar.
Música dava eu no confessionário…Aprendi rápido "a fugir à confissão", padres italianos mal os percebia, comparecia na Capela mas ficava sentada no banco, mudava de lugar sem que ninguém se apercebesse, depois de algum tempo cansada, ia-me embora, descansada e dizia que sim…e era não!
Possibilidades tive de aprender a tocar acordeão, o que as Irmãs teriam gostado, arranhei no piano a canção do patinho " o patinho Barnabé, tiro liro, lé, a dançar partiu um pé, tiro liro lé…" esse sim fascinava-me a sonoridade.
Proibido usar calças, muito menos mini saia. Num domingo obrigaram-me a mudar de vestido, porque o acharam muito curto e inadequado...antes que tivesse castigo maior!
Passeios ...A primeira vez que andei de comboio na Linha entrei na estação do Estoril a caminho do Cais do Sodré . Em fila indiana seguíamos ordeiras as Irmãs a pé pela rua do Alecrim onde parámos na Livraria Bertrand, onde entraram. Ficámos à porta com rapazes a passar ao Chiado que gozavam connosco ao ver-nos vestidas de bata igual e também piropos de mau gosto todo o caminho até ao Metro no Rossio com saída no Saldanha para o Teatro Monumental onde assistimos à peça "O Pinóquio".
Melhor, mais aprazível as idas aos Salesianos no Estoril , Colégio da mesma congregação, masculino, com igreja muito bonita onde se cantava no coral.
No ringue de patinagem aprendi a patinar com os velhos e pesados patins dos jogadores de hóquei, a nossa treinadora Judite de Sousa, tinha sido atleta do Benfica.
Boas tardes de cinema aqui passadas e de piqueniques na linda mata, grandes eram as cestas, e ainda nos levavam à praia mesmo defronte da igreja , quase privativa, haviam torneios de jogos de andebol e basquetebol com as colegas da Casa Pia ou de Vendas Novas, certo e sabido, a faixa branca estendida na entrada do Colégio à nossa chegada, em caso de derrota...
Atentas as Irmãs exprimiam em grandes letras a preto o slogan "PERDER OU GANHAR É DESPORTO".
Litígio tinha e raiva também de estar num Colégio interno. Logo de manhã puxava pelo calendário que trazia no bolso da bata, num ápice já o eliminava antes de mal começar, sentia que passaria o tempo mais depressa se o eliminasse com um risco a vermelho.
Pior ouvir o atrevido papagaio que havia numa varanda a caminho do Estoril ao passarmos gritava em boa pronúncia...PUTAS...PUTAS... e éramos inocentes!
Havia tarefas diárias que eram incutidas a todas as alunas para fazer delas também "umas boas donas de casa". Pela manhã tinha a cargo a incumbência da limpeza da biblioteca. Sozinha no trabalho cedo descobri as caixas de chocolates, não havia dia que não surripiasse um...De espanador nas mãos limpava o pó às lombada dos livros das prateleiras e às duas grandes mesas onde todas as noites em seu redor as Irmãs se sentavam para conversar, ver televisão, ouvir música, saborear doces...Então não via as pratinhas no caixote do lixo...quando ao meio da manhã a porta estava semi aberta e subia as escadas vinda do recreio, surpresa e meio aflita a ver o serpenteado do pó que tinha ficado nas mesas por serem largas, os meus braços não abarcavam os tampos... Às refeições tinha a tarefa de servir no refeitório das alunas.
Dias de Retiro… Dois dias por ano em que as alunas nada faziam e as Irmãs sim, elas é que trabalhavam para as alunas. Tivemos autorização para nos dirigirmos à biblioteca e escolher um livro. Por a conhecer bem escolhi o que na altura me poderia ajudar a tirar dúvidas. O título não era apelativo, era forte , feio e demasiado grande "Os Porquês da Menstruação"… Na ronda pelos jardins as Irmãs apreciavam os títulos escolhidos pelas alunas e quando se chegaram à minha vez, perplexas com a minha escolha, levaram-me à sala da Irmã Diretora onde fui interrogada, e a única interpelada queriam saber a razão da minha escolha, o que sabia sobre o tema, se tinha conhecimento sobre o conteúdo do livro... No pior fui incumbida na tarefa da recolha dos paninhos usados pelas colegas para levar para a lavandaria, todas espertas, se esquivaram...Difícil é atestar o cheiro nauseabundo do sangue pérfido, seco, que exalava ao abrir as caixas para os tirar...E disso expliquei às Irmãs, porque razão tinha essa incumbência se eu não os usava? Depois perguntaram-me se mensalmente não sangrava...Perguntei aonde?Da vagina, e as questionei o que era " bagina " com elas a rir da troca do v pelo b e do sotaque,em que uma diz "bichana" e logo lhe respondi - enquanto a bichana dormia, uma leitura do livro da 3ª classe... finalmente perceberam o meu suplício de tanta pergunta que não sabia responder, logo eu, incrédula antes do meu ingresso no colégio em setembro tinha sido o mês da minha iniciação de mulherzinha.Razões inexplicáveis porque a minha mãe nada me ensinara e por isso eu nada sabia e claro senti-me incomodada, detestei o momento. O melhor para mim foi que o fenómeno não voltou a aparecer…Todos os meses ao telefone a minha mãe preocupada não se esquecia de me perguntar, eu dizia que não tinha voltado toda contente, porque da experiência nada tinha gostado. As Irmãs ouviram-me na minha explicação que a intenção da escolha do livro se prendeu apenas para obter mais conhecimento de um assunto que me parecia ser proibido, e por fim entenderam que estavam na frente de uma menina mulher, inocente, mas esperta em querer desabrochar...Que sabia eu das consequências ou da responsabilidade de ser uma mulher? Nada!
O meu pai apercebendo-se da situação ouvida ao telefone ao longo dos meses instigou a minha mãe sobre a gravidade deste assunto. Mal regressada em Junho a casa de férias, as duas fomos ao consultório do Dr. Travassos que extravasava de gente com carros à porta, faltava pouco para a minha mãe entrar no turno da tarde nos Correios para decidir ir ao Fundo da Rua ao consultório do Dr. José Manuel da Junqueira que numa receita de três comprimidos amarelinhos ao fim de dois dias, o assunto que detestei voltou a ser como na primeira vez...
Irmã Libânia Professora de Português…Aflita, andava com a insistência permanente desta Irmã para ler as leituras na missa, sempre por mim declinado por ser envergonhada e, corar muito. Sem acreditar em mim, castigou-me, baixando a nota final para me obrigar a ir às orais...Nunca tinha tido uma oral, nem sabia como se desenrolava, tive de perguntar a uma das alunas mais antigas que me descansou dizendo que era fácil, bastava estudar bem uma lição à minha escolha. Assim foi na oral mal acabei de mencionar a página, a Irmã, disse-me "tu e a Luísa de Lisboinha, não tem direito a escolher a lição"… Reparem que não havia quaisquer direitos. Estávamos antes do 25 de abril.
Tinha escolhido "Na Senhora da Atalaia" de Fialho de Almeida, in Guia de Portugal... " (...) Da ondulosa colina em que se levanta o santuário, o olhar, correndo sobre os campos, hortejos, vinhas, mato e pinhais de rama curta, flutua,embriagado da cor, vindo topar a norte a expansão que o Tejo faz, chamada mar da palha em cujo fundo, num além de montes, Lisboa desenrola o seu panorama esfumaçado".... Entrei em pânico, mas, lá diz o ditado "Deus Existe"... Recebi indicação para abrir o livro na página 157 e, visivelmente trémula, sem pinga de sangue, ao abrir na página indicada reparei que o soneto estava cabulado e em ato imediato pus os braços à frente do livro para o júri de 3 freiras não se aperceberem, mudando radicalmente de espírito… Brutal foi a leitura em tom declamado!
Poema de António Maria de Sousa Sardinha (n. em Monforte, Alentejo a 9 Set. 1887; m. em Elvas a 10 Jan. de 1925)
Fiel ao sangue, nossa irmã germana
chora Olivença as suas horas más
junto do rio que tornou atrás,
quando soou a trompa castelhana.
Ó casa de Antre Tejo e Guadiana,
lembra-te dela que entre feras jaz!
Não a dobrou a guerra nem a paz,
-fiel ao sangue, o sangue a ti a irmana!
E todo aquele em quem ainda viva
o ardor da Raça e a voz que nele anseia,
se for para além da raia alguma vez,
é Olivença nossa irmã cativa
lá onde com surpresa à gente alheia
oiça dizer adeus em português!
Respondi com êxito; a orações, substantivos, verbos, tudo o que quis, de tal ordem que a Irmã Geraldes a Prof. de Matemática ao seu lado, e chefe de júri a questiona "não achas que estás a exagerar?" ao que ela lhe responde " quando encontro pela frente uma aluna desta envergadura nunca me canso"...De seguida tive oral de Matemática, o meu calcanhar de Aquiles, no quadro não fui capaz de fazer a equação... Bondosa, a esquelética Irmã Geraldes, em voz alta vira-se para a audiência e diz "mas o que é a Matemática ao pé da excelente prova de Português que todos aqui maravilhosamente assistimos hoje"… Estarrecida com tal milagre, aprovada!
Na porta a minha mãe espreitava para me trazer de volta a casa no carro de praça do Manuel da Junqueira no dia 13 de junho de 72.Fascinante foi sem dúvida alguma a aprendizagem que adquiri no Colégio Religioso, só não foi melhor por culpa minha!
Das amigas que o tempo perdeu...Helena Assis de Mangualde; Beatriz Alves Milhais Abreiro; Lídia Pinheiro Sobral Gare Guarda; Zita Cabral Rapoula do Coa Sabugal; Nazaré Santos Aguiar da Beira; Diamantina Resende Macedo de Cavaleiros; Marília Taveiro Rebordelo; Goret Vaz Vilar Oeste; Júlia Novo Milhais Abreiro Ana Velez Tapadinhas Almada e,...
Quem me foi ver ao Colégio? O Armando (Girafa) amigo e colega do meu pai, com ele trabalhou no Tribunal, primo por afinidade por parte da mulher Palmira.Inteligente trocou Ansião por Cascais.Lembranças de saudades dos filhos com quem tanto brinquei, na casa onde fui comprar álcool ao decilitro o Adriano o "Nito" lindo, da minha idade e a Alicita mais nova.
Teimosia da minha irmã … Nas férias de 72 não se calava " falava que se fartava à boca cheia" sentia-se desfavorecida em relação a mim "se eu tinha estudado num colégio religioso ela também tinha o mesmo direito, não devia ser penalizada". Aconteceu o imprevisto com o falecimento do nosso pai em setembro. A minha mãe sem pensão, só podia contar com o seu ordenado.Se comigo no ano anterior o ordenado do meu pai era o valor da minha mensalidade (2 contos de réis). Coitado de quem é mãe...Para não favorecer uma filha em detrimento da outra, concordou com tal pedido desde que as três concordassem no maior sacrifício, rigor e poupança, ainda com o reparo e condição do colégio ser em Leiria, mais perto a visitas. Aparentemente feliz a minha irmã tinha conseguido o seu objetivo. Atrevida ainda convenceu a sua amiga e companheira de traquinices a Elvira André do Escampado de S. Miguel que acedeu a ir com ela, as duas foram de malas feitas a caminho do Colégio Religioso de Leiria.
Encontrei escrito num livro de Português "Elvira André sempre disposta e amiga. Recorda-a que ela te recordará. Mena Valente 14-11-73 "
Passada uma semana, chegava eu de carro com a minha mãe ao adro e damos conta que alguém está na porta da cozinha , tamanha surpresa ao constatar que se tratada dela, com a mala...Tinha fugido do Colégio e deixado a amiga para trás... Nunca apurei como o perpetuou... grande pasmo só de pensar no espalhafato que fez para o frequentar , porque dinheiro, sei que não tinha!
O que me ficou no ouvido?
Viva Jesus Irmã-, o cumprimento devido ao passar por alguma.
Maria Auxiliadora rogai por nós
Do que me esqueci?
Rezar a avé maria em inglês e francês
Canções de natal em inglês
Tocar piano
Jogar basquetebol e andebol
Do que ainda sinto saudade? Saborear o amargo dos limões bebés mal crescidos a despontar nos limoeiros dos canteiros do recreio, uma contra ordenação das Irmãs...
A primeira vez que provei alfarrobas que me pareciam vagens de favas secas mas de sabor melado.
Desabrochei na liberdade que desde sempre viveu em mim, apesar de presa, senti-me livre, porque soube inventar soluções para acalmar os meus dias, sem drogas nem álcool, o plano foi manter a cabeça ativa e apaixonada. E com isso safei-me e bem!
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