quarta-feira, 9 de março de 2022

A seca na Foz de Alge em fevereiro de 2022

                             

No dia 3 de setembro de 2021 teimei aqui findar o meu passeio em dia de aniversário de casamento.

Ainda com água.

A foz da Ribeira de Alge vista do alto

Em finais de fevereiro de 2022 em cenário de seca com brutal descida do nível de água da Albufeira de Castelo de Bode .
O rio Zêzere o segundo maior rio a nascer em Portugal, mantém bom caudal.
Já a Ribeira de Alge na sua foz em quase regato...

Foz em garganta apertada da Ribeira de Alge no rio Zêzere, no concelho de Figueiró dos Vinhos 
Pilares da primitiva ponte na Ribeira de Alge
Vislumbrei os pilares da primitiva ponte. Segui pela ponte absoluta e palmilhei o carreiro para o complexo ruinal da ferraria real,onde se fizeram os primeiros canhões, muitos foram para a Índia.
A  ponte obsoleta, só para uso pedonal, ao lado para sul da nova ponte
                     
 Distingui boas paredes em xisto, com cimento, quiçá para solidificação do complexo com o enchimento da Albufeira 
                     
Lodo, vegetação a nascer com um telhado quase ao mesmo nível
Resta meia coluna em redondo
                       
Desafiei muitos perigos
Desci a ribanceira íngreme sem escorregar, já o meu marido escorregou, com sorte para a barreira e voltou para trás... Há buracos e gretas no lodo pela secura, a lembrar brechas nas estradas em terramotos. A levada está quase toda assoreada. Senti medo junto do açude com a massa de água para montante...afinal estava sozinha...

                                          
                    
                                               
                    
                    
Ruína das Reais Ferrarias da Foz de Alge

As Reais Ferrarias da Foz do Alge surgiram como recuperação das desactivadas Ferrarias de Tomar e Figueiró, mandadas encerrar entre 1759 e 1761.

Fábrica de fundição de ferro localizada na margem nascente da Ribeira de Alge. Era movida a lenha , o combustível existente nas encostas de ambos os lados. O seu primeiro alvará terá sido concedido em 1655. Esta fábrica foi encerrada de 1759 a 1761, tendo sido feitos esforços para a sua reabertura já no início do século XIX, em cumprimento da carta régia de 18 de maio de 1801. Contudo, foram abandonados aquando das invasões francesas. As infraestruturas ainda foram usadas para o fabrico de armas pelo exército Miguelista a utilizar no cerco do Porto.

Por Carta Régia de 18 de Maio de 1801, dirigida ao Bispo de Coimbra, Conde de Arganil e Reitor da Universidade de Coimbra, o então Príncipe Regente D. João, considerava "(...) a grande necessidade, e utilidade que ha de crear-se hum estabelecimento Público (...) que tenha a seu cargo dirigir as Casas de Moeda, Minas e Bosques (...)", para o desenvolvimento daqueles ramos da indústria, fundamentais para a Real Fazenda e para o bem estar da sociedade. Considerando que José Bonifácio de Andrade e Silva, Professor de Metalurgia na Universidade de Coimbra, nas viagens científicas pela Europa que fizera a mando da Rainha D. Maria I, tinha adquirido vastos conhecimentos e experiência nas áreas das Ciências e da Indústria metalúrgica, bem como da Administração Pública, reunindo condições para o cargo, nomeava-o Intendente Geral das Minas e Metais do Reino, ficando "(...) encarregado de dirigir, e administrar as Minas, e Fundições de Ferro de Figueiró dos Vinhos; e de propor [ao Príncipe Regente] todas as providencias, e regulamentos que [julgasse] necessarios para pôr em acção, o valor produtivo das mesmas Ferrarias. (...)".

José Bonifácio de Andrade e Silva deveria organizar e consolidar o ensino da cadeira de Metalurgia na Universidade de Coimbra durante seis anos, findos os quais deveria ocupar-se unicamente da Intendência Geral das Minas e Metais, ocupando-se particularmente das Ferrarias de Figueiró dos Vinhos, localizadas junto da Foz de Alge, bem como da abertura das minas de carvão de pedra.
No ano seguinte foi iniciada a reconstrução dos edifícios e foi contratado pessoal para os trabalhos. Entre 1807 e 1809 José Bonifácio de Andrade e Silva suspendeu as suas funções, devido às Invasões Francesas, tendo-se alistado no Corpo Voluntário Académico. Há, no entanto, registos de documentação durante esse período. A Fundição recuperou, depois o seu funcionamento normal, tendo atingido um bom nível técnico, de acordo com um relatório de 1837 do Barão de Eschwege, então Intendente Geral das Minas e Metais (segundo um estudo de António Arala Pinto, in "Indústria Portuguesa", 1947, referido no "Dicionário de História de Portugal").

As minas e a fundição estiveram em laboração até ao princípio do século XX.

Saída da água pelos arcos em meia lua cerâmica, que serviam para temperar o ferro

                 

Os fornos
Estão abatidos. Um apresenta estrutura circular interior em ferro
A chaminé
Os esticadores em ferro da chaminé
                                                  
Por todo o lodo com fendas brutais 
                                          
O açude da Ribeira de Alge
                    
Açude feito com arcadas em cerâmica que se visualizam pela derrocada
A represa do açude e a boca da levada com madeira trazida em enxurradas
A levada é larga
Apresenta duas rupturas que fazem cascata
A Ribeira de Alge antes do açude tem elevado manto de água
Mimosas floridas


Selfie em cariz feliz ao desfrutar de tanta emoção na vivência afoita e, deslumbre de  mais uma aventura!

O centenário do médico Fernando Manuel Nogueira Travassos

Crónica  a que retirei excerto para publicação no Jornal Serras de Ansião

  Ao médico Fernando Travassos 

Mui Amigo do Povo de Ansião
Do Ofício sabia como Ninguém! 
De coração Bom Samaritano
Descanse em Paz!

Foto retirada da entrevista em 2012 de Ansião TV
A crónica nasceu a 22.02.2013 onde juntei outras individualidades de Ansião. Em finais de 2017 destaquei individualmente este médico e, de novo a reformular em  fevereiro de 2022, por altura do seu primeiro centenário. 
Desde que me conheço sempre ouvi falar do Dr. Travassos. Entre outras afinidades com o meu pai,  tinham o mesmo gosto pela caça. Ao limite do pinhal do Dr. Faria, ao Carvalhal,  no pinhal do meu avô "Zé do Bairro" num valado de argila alcantilada o meu pai resvalou numa raiz aérea de um grande pinheiro e, em desequilíbrio, a arma num disparo acidental ( por fazer os próprios cartuchos sem medir a pólvora) que lhe decepou o dedo indicador da mão esquerda, valendo-lhe o médico, seu amigo... Conta a minha mãe que a sua chegada a Ansião foi em janeiro de 1950, tinha 28 anos para trabalhar no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, ao Ribeiro da Vide, onde chovia a cântaros. A tia do meu pai - a Maria, apanhava as beiras com alguidares  e amornava a sala com latas de brasas, tal préstimo saldou influência na sua filha a São – sua ajudante, em seguir enfermagem, que abraçou em Lisboa, depois de casada. Hospedou-se na pensão da “Ti Dorinda Monteiro.” seu primeiro consultório foi na vila, no sobrado da casa do Sr. Domingos Carvalho. Desse tempo recordo após a escola primária, com os meus oito anos, na hora do lanche, ia direita ao correio velho, pelo Beco do Ensaio, buscar dinheiro para comprar uma sandes de iscas ou de atum, na tasca do Sr. Domingos Carvalho e, via a porta aberta  e, a  íngreme  escada de madeira, que os doentes tinham de subir...

Além da excelsa abnegação à profissão ressalta também a grande evidência que incrementou no associativismo da vila de Ansião, que muito a engrandeceu! Em 1951 foi sócio fundador do Clube de Caçadores com o comerciante Sr. Adriano Carvalho de Cotas, entre outros ;  em 1962, participou nas Festas do Concelho onde durante anos orientou o cortejo alegórico, na escolha dos motivos. No início da década de 70, de manhã chegou-se ao Largo do Bairro de Santo António e mandou desfazer o brasão de Ansião, por estar descentrado na frente da camioneta emprestada pelo Sr. Manuel Murtinho. O médico,  visivelmente irritado, exigiu  que fosse desfeito para ser feito como o devia ser e foi, pelo saber estético quando via que as pessoas não o tinham,  fazia-se ouvir para aprenderem a respeitar os pormenores que devem ser harmoniosos.

Entre 1965 a 1973 teve cargos diversos

Director Adjunto do Jornal Serras de Ansião; Membro da Comissão de Melhoramentos  intitulado “Os Amigos de Ansião”;Vice-Presidente dos Bombeiros Voluntários; Presidente do Conselho Fiscal da Filarmónica Santa Cecília e sócio honorário e de 1974 a 1992 Diretor do Centro de Saúde de Ansião.

Homem de perfil, ao jus de celibato, dotado de grande humanismo e dedicação extrema aos outros, pese dias de ar sisudo e por vezes mal humorado, sem tempo para tomar fôlego, sempre com tanta gente para atender,  que em nada se comparava com outros colegas  do concelho. Recordo o Dr. António Amado de Freitas e o Dr. José Manuel de Almeida, da Junqueira. 

De silhueta aprumada, tez morena, olhar tímido e doce, sorriso escorreito de finas mãos e dedos comidos pelo RX. A idade não lhe alterou o aspeto de homem charmoso , até a verruga no queixo lhe conferia graça. Abdicou de ter vida própria em prol da sua profissão. Quiçá, deixou mulherio com dores que não pôde curar… Bem me lembro ao Beco do Ensaio, em passo apressado, o corridinho da D. Armanda Oliveira com a mana Mariazinha a caminho da sua casa para o chá das cinco 

Reputado médico " João Semana" e "médico do povo" ao granjear tamanha fama em Ansião e redondezas, dotado de paixão no desempenho da sua profissão, sem horários, a cuidar dos outros. Acorreu a onde foi chamado, sem olhar a quem, fosse de dia ou de noite e, na Clínica das Cinco Vilas em Chão de Couce com o Dr. Quintela e o Dom João Pais. O que o distinguia dos colegas era além da dedicação extrema, exigir saber sobre a evolução da doença dos seus doentes. Os postos públicos nos Lugares foram determinantes. Mas, naquele tempo, imperava o analfabetismo, não havia eletricidade nem televisão. A maioria das pessoas não conseguia falar para um objeto estranho que era o telefone. Assim, era um terceiro, a dona do posto a intermediária a dar a noticia ao médico. Há episódios sórdidos por falta de instrução - "Num posto público, uma mulher telefonou-lhe para o informar das melhoras do marido. O médico pergunta se ele obra, a mulher ficou calada…Repetiu e nada, por fim,  diz-lhe olhe lá ele caga?" Óbvio que o médico conhecia bem o povo  para usar com facilidade o calão para se fazer entender.Mas, quem não guarda boas estórias de salvação ou de vivências na casa dos pacientes? E das estórias nas noites invernosas  fazendo espera das melhoras do paciente, sentado ao borralho ou à mesa, a comer ou a conversar,  até adormecer de cansaço? 

Sempre nutri um especial carinho e cumplicidade pelo Dr. Travassos, pela sua franca disponibilidade,  pelo gosto e prazer em mais saber do passado de Ansião, a  terra que adotou para viver e à qual se dedicou inteiramente, como outro assim não conheci . Conheceu Façalamim na década de 50, do séc. XX,  já só lá viviam duas mulheres, era então um Lugar ruinal , a sul de Santana, por onde passou a estrada romana , foi limite das herdades do mosteiro de S. Jorge de Coimbra e, do Mosteiro de Santa Cruz de Ansião. Despediu-se com a retórica quando lá quiser ir diga que vamos os três...Ainda me falou de uma estalagem na Fonte GalegaMuito sabia e, nada ficou escrito e devia, por falta de uma bibliografia em retrato de época . Ainda pode ser feita,  contudo peca pelo grande atraso, falta de autenticidade pelo esquecimento da oportunidade que era única, se tivesse sido editada em vida do médico, que a teria lido  orgulhoso a recordar as suas muitas vivências e memórias...

Vivi infinitas horas em espera no seu consultório onde assisti ao vai vem de táxis, que tinham prioridade …O meu Bem Haja, pelo carinho que sempre me privilegiou, quiçá salvou-me a vida,  pese a grande cicatriz  na perna esquerda, os meus pais diziam que foi de uma vacina estragada ? Tratou-me de outras mazelas, menos do cobrão – cortado com uma faca e reza pela “Ti Jezulinda do Carvalhal” com a mezinha feita no momento com palhas de alho, azeite e enxofre, tudo pisado no chão de cimento com o martelo. Resquício da herança judaica, ainda viva em Ansião no domínio das maleitas e mezinhas, pese haver médico na vila, desde os finais do séc. XIX. Até então, essa antiga tradição estava na mão de barbeiros peritos; havia um no Carregal, outro na Ramalheira etc. e curiosas, conheci algumas. Enraizado hábito no povo para nos anos 60 do séc. XX ainda se confundir a real prática da medicina com essa arte ancestral, sem o desprestigiar foi chamado “barbeiro”… A falta de cultura sobre a origem da profissão do Barbeiro- Cirurgião que teve origem na Idade Média, em Inglaterra. Tratavam de pequenos ferimentos, sangrias e tiravam dentes aos soldados, que se alastrou ao povo. Desse tempo resta a simbologia do Cilindro do Barbeiro, listado em vermelho e branco e azul, por representar o sangue e os curativos e hoje se visualizam em muitas barbearias.

Claro que o Dr. Travassos não era um Deus! Por certo haverá alguém insatisfeito com o diagnóstico…Recordo do filho pequenito do Alexandre e da Helena, que aflita com ele nos braços saiu da sua taberna para subir as escadas do consultório mas, o médico não o conseguiu salvar ...Sobre a doença do meu pai dizia à minha mãe “ o Fernando tem um bicharoco” – assim se referia ao cancro há 50 anos.

Não havia dia que não o visse à boleia do seu fiel companheiro - o carro Ford. Num tempo de poucos carros sempre  o reconhecia ao alto das padarias, engatado na mesma mudança, vestido de cigarro na ponta da boca, óculos de massa e sobretudo.

Até à sua chegada a Ansião, quem valia às mulheres parturientes eram as chamadas "aparadeiras". As irmãs “Lucrécias” foram suas ajudantes. Confidenciou-me que a Matilde aprendeu a arte com a mãe e, também fazia partos sozinha com a irmã Virgínia. Havia outras. O Sr. Alberto Pires, ajudante 40 anos na Farmácia do Dr. Botelho, de estatura mediana usava chapelinho no ritual diário de vénia  no cumprimento - bom dia Sr. Doutor…E, confortava com boas falas as grávidas não vai custar nada minha filha…

Frontaria do velho hospital
Foto do casamento da prima Tina na frente do velho hospital onde trabalhou
Sou a menina de chapéu

Na década de 60 do séc. XX, o velho hospital da Misericórdia  ao Ribeiro da Vide foi requalificado, graças à influência do Dr. Vítor Faveiro  e, do seu Provedor José Lucas Afonso Lopes. A novidade na chegada de táxis com parturientes.

Tarde soalheira de setembro no alvor dos seus 90 anos, no jardim do Ribeiro da Vide, à sombra dos plátanos com a sua fiel amiga D. Lurdes Santos onde me cheguei à prosa onde me diz:

Ponha lá isso no Livro!

Até aos anos 50 a falta de médicos era substituída pelo barbeiro. Havia um dos lados do S. João de Brito que tratou dum paciente que veio a falecer. O caso veio a Tribunal, na audiência o réu interrogado apresentou ao Meritíssimo em abono da sua defesa o seguinte argumento Saiba Vossa Excelência que fiz um barbarismo aos sintomas…"

" Outro barbeiro que andava a tratar de uma paciente a quem não se via jeito de cura, acabou por mandar chamar o Dr. Travassos, na visita alguém se descaiu que a doente andava a ser seguida pelo barbeiro da Ramalheira…Responde o Dr. Travassos olhe que lhe instauro um processo judicial…" Porque é claro naquele tempo os barbeiros já não podiam fazer essa práticas ligadas á medicina.

"Um dia apareceu-lhe no consultório um homem dos Nogueiros, aflito para o levar a sua casa fazer o parto à mulher. Durante a viagem o pobre homem só se lastimava veja lá Sr. Dr. já tenho cinco, agora mais um… diz-lhe o médico deixe lá homem, onde comem 5 comem 6…Chegados a casa o médico manda-o ir dar uma volta que ali na vez de ajudar só desajudava, que viesse mais tarde. Ao voltar pergunta-lhe, então Sr. Dr. já são 6… Não...São 7…"

Deslindou  a tempo a meningite ao Abel Nogueira como de outros…

Episódio verídico que me relatou o Dr. Manuel Dias

" (...)  se eu existo a ele se deve tanto quanto aos meus pais; Nasci ao contrário (não dei a volta, ou dei voltas a mais!?) a parteira ao constatar a minha posição, achou que o "caldo estava entornado"!
Havia que chamar o médico. O meu primo Zé Carteiro (aliás, a esposa, a terna Ti Aurora é que era prima em 1.º lugar de minha mãe) que era vizinho teve de telefonar para o Dr. Travassos (o nosso João Semana lá se levantou e seguiu com a urgência que lhe foi possível para o Casal. Fez a cirurgia necessária e tirou-me, depois cuidou o melhor que pôde da minha mãe!
Constatando que eu não dava qualquer sinal de vida, provavelmente por ter estado horas nasce não nasce (e se calhar já com o cordão umbilical cortado, disse a meus pais: este era macho, mas já se foi! Contudo, porque a esperança é a última a morrer, agarrou-me pelos pés, esfregou-me com álcool e deu-me "porrada" pelo corpo todo!
Foi a minha primeira coça. E não é que foi bem dada? Quando testemunhou os primeiros sinais de vida, disse ao meu pai que era melhor vestir-se, já que era católico e certamente quereria batizar-me, e com ele e a parteira iriam chamar o Arcipreste, para que me baptizasse de urgência, porque de certeza tinha poucas horas de vida.
E assim foi, fui baptizado no mesmo dia que nasci: a madrinha foi a parteira (a Ti. Laurinda) e o padrinho o S. José (talvez então? a imagem mais perto da pia batismal, não sei bem!). Felizmente (ou não!?) o médico enganou-se na minha esperança de vida. Mas salvou-me e ainda bem!"

Episódio verídico que me relatou o Renato Paz 
" (...) Tenho dois irmãos; o Rogério e o Ilídio Nuno. O meu irmão mais velho à nascença não respirava . O Dr. Travassos, contava o meu pai, lhe salvou a vida. Pegou-o pelos pés, de cabeça para baixo, deu-lhe umas palmadas no rabiosque com força , venceu o homem de capa negra e foice que o queria levar..."

Imaginar o pasmo com enxerto de porrada a salvar crianças!
E ainda a rápida atuação em partos morosos, 
cuja falta de oxigenação origina atraso cognitivo!

A brincar aos médicos com a cachopada do Bairro
A profissão de médico no Dr Travassos inspirava as crianças a brincar ao seu consultório. Uma dessas vezes podia ter corrido mal. A minha irmã fazia de médico e deu a tomar uns comprimidos pretos, pareciam carvão, da botica do nosso pai ao Jorge, neto do Ti Parolo. Ao começo da noite o rapaz sentiu-se mal e a avó e a tia Tina foram a caminho do Dr. Travassos que não estava porque naquele tempo também dava consultas na Clínica Cinco Vilas em Chão de Couce. Como o miúdo estava mal meteram-se num táxi e se encontram a meio caminho, o médico perante o quadro e por estar mais perto de Chão de Couce decidiu voltar onde lhe fez uma lavagem ao estômago e o salvou de maleita maior. De volta a Ansião as mulheres bateram forte na porta do correio velho para dar o recado à minha mãe que fazia o turno da meia noite- " D. Ricardina tenha mão na sua Mena com a brincadeira aos médicos o sarilho que ia arranjando com o meu neto..." Claro, eu é que ouvi por ser mais velha que tinha de tomar conta dela, sendo mais responsável..

As autópsias

Alguns episódios relatados pelo meu pai durante as refeições, então funcionário no Tribunal e ajudante do Dr. Travassos, nesse serviço, que era feito a sul da Capela do cemitério. Debaixo do alpendre jazia uma grande pedra de calcário, que me parecia ser Lioz, ligeiramente escavada para encaixar o defunto com um orifício por onde escoriam resquícios dos fluidos do cadáver esquartejado. Fascinada e curiosa com os relatos macabros,  um dia fui ao cemitério para ver  a pedra e, foi arrepiante ali desabrigada onde tudo acaba!
Um outro episódio daquela mulher encontrada morta no chão para as bandas da Lagarteira, teve de ser serrada para caber na urna…Certo e sabido, ninguém em casa comia mais nada nesses dias!
A vivenda  do Dr. Travassos 
Notícia no Jornal Pombalense O ECO - 20 de Junho de 1963
Partilha Paulo Alexandre Batista Silva
                             
pedreiro foi António Afonso Lucas da Mouta Redonda, Pousaflores, era  irmão do Prof José Lucas Afonso, primos direitos da minha mãe. Em Ansião, a primeira obra foi a casa do irmão e, por isso o Dr. Travassos que adquiriu o lote ao lado lhe incumbiu também a empreitada. Porém, ele não se entendeu com a escadaria graciosa no interior. Ao que parece nenhum artista do oficio atinava em a fazer conforme o projecto, até ao dia que lhe apareceu um homem dos lados do Pessegueiro - em prol de pagar serviços afiançou ser capaz de a fazer - o médico tinha doentes para atender, não fazendo muita fé no dizer do pobre homem, ainda assim o levou a ver o trabalho, e lhe deu a obra. Quem o ouviu, admirado, ficou com a sua teoria . No final a obra foi um sucesso, confidenciou-me por estas palavras o Dr. Travassos, com pena de já não se lembrar do nome do homem, embora de início não acreditasse que ele fosse capaz...porque estava cansado de ninguém a conseguir fazer , acabando de dar alternativa a este artista do Pessegueiro, que em  verdade é obra digna de ser vista. Brutal escadaria interior da sua vivenda que se avista da bela vidraça, com grade em losangos,  em alumínio dourado e preto  que se contempla da rua quando o estore está aberto e, o esplendor do baú com incrustações a marfim, oferta do seu bom amigo João Calado, que o devia ter trazido de Macau!
Quem não reconheceu o afeto carinhoso em todos os momentos da D. Lurdes Santos e de alguns amigos mas, alegadamente, não se pode comparar com a sua família e, tanto o entristecia e a quem tanto deixou de poupança!
Homem desligado da fortuna amealhada - na verdade nem sei como, falou-se em mais de um milhão, se a maioria das vezes nem cobrava nada, é sabido que as pessoas enchiam-lhe a casa de tudo e até a casa foi paga pelo povo, assim o ouvi, recordo o meu pai na altura deu 800$00 para a porta grande de alumínio. Também os vários carros se falava que tinham sido dados pelo povo...O que me apraz dizer é que pouco quase nada lhe serviu de valia para em final de vida se aperceber, mas já sem forças para lhe dar outro rumo...Desconheço se pensou deixar uma Fundação a perpetuar o seu legado, de bom samaritano!
Nos últimos anos de vida distingui algumas vezes o seu fiel amigo o "Júlio 29" na sua companhia, as minhas primas Júlia e a irmã São, do Bairro, com assados a caminho da sua casa...e outras. Nutria uma amizade com o Sr. Júlio Freire (barbeiro de Albarrol) ganha nas noites de tertúlia na antiga farmácia, onde no papel de autodidata, aprimorou o gel perfumado que aplicava após a barba aos seus clientes .Quiçá seria a "costela judaica"  a uni-los!
Numa festa de agosto vi o Dr. Travassos nos degraus da Misericórdia onde assistia ao folclore. A penúltima vez que o encontrei vindo do jardim do Ribeiro da Vide com a D. Lurdes, estava a chapinhar de cimento as faltas da calçada à minha porta, onde lhe lancei convite para entrarem. Guardo a boa memória de o ver a observar a sala atentamente como se recordasse a casa dos seus pais para me agradar nas bonitas palavras proferidas...Ofereci-lhe um frasco de doce de abóbora que tinha comprado numa feira de produtos endógenos na Praça de Toiros do Campo Pequeno. Viu-o pela última vez no mês de agosto, aos 95 anos, já muito debilitado e depois mais tarde encontrei a D. Lurdes no cabeleireiro a solicitar a ida de uma funcionária para lhe cortar o cabelo, disse-me que já não saia de casa, piorou e foi para o hospital de Coimbra onde faleceu no dia 27 de janeiro de 2018.
O Município de Ansião, em sua Memória decretou 3 dias de luto municipal .
A Junta de Freguesia não privilegiou escolha da sua sepultura junto do passeio público.
No seu último desejo de ficar sepultado em Ansião e não na sua terra natal - Arganil. Jaz em campa singela como queria, sem vaidades, afinal como viveu. Despesa suportada pela D. Lurdes Santos, julgo jamais ressarcida... Sempre imaginei a pedra branca como a do poeta Políbio Gomes dos Santos gravada a cinzel com a sua silhueta vestido de sobretudo e suspensórios, óculos e cigarro na ponta da boca, a culminar grandiosa obra para os amantes de arte fúnebre no cemitério de Ansião, que ganhou mais um herói.

Consultório Memória 
A autarquia instalou numa sala da antiga cadeia - o Consultório da Memória, para assinalar os 70 anos que chegou a Ansião o “médico do povo”. Senti falta do armário de nogueira doado pelo farmacêutico Dr. Botelho e do banco preto, pelo simbolismo de horas em espera, dos suspensórios, sobretudo e do telefone na secretária , quando aqui aportou era de manivela ligado ao PBX do correio velho que tinha 50 assinantes. Chamava às mulheres de qualquer idade "meninas" …Não havia dia sem telefonar para o correio a perguntar à minha mãe; menina ainda tem muitas chamadas em espera?Estive presente na inauguração em espaço a abarrotar pelas costuras, sem ar condicionado entalada na porta com a escada...Singela homenagem senti ausência da família, pese o convite dirigido pela Câmara . Julgo que faltou uma romagem ao cemitério, no manifesto carinho do povo que não esmorece e seria uma grande homenagem !
Valeu uma canção com poema da Odete Antunes, julgo musicada pelo António Simões que lhe cantavam em dia do seu aniversário com demais amigos na romagem a sua casa para o parabenizar. Distingui ainda presentes os Orgãos da Comunicação Social - Serras e Horizonte - onde vim a ler que o espólio tinha sido doação da família. E não foi. A doação tem o mérito da D. Lurdes Santos, o que a família deixou na casa até podia ter deitado para o lixo ou vendido a um antiquário. Por isso se deve dar valor a quem o teve, grande gesto altruísta de ofertar para manter viva a memória do Dr. Travassos, que ninguém lhe a pode tirar! A que acrescento a doação do lindíssimo e bom serviço em prata , tinha sido uma oferta ao Dr. Travassos acaso a D. Lurdes fosse mulher de interesses o vendia, e rendia bastante - os pequenos gestos em gente com reformas minúsculas, para se encontrarem os maiores valores na nossa sociedade, por isso o que o Dr . Travassos lhe deixou de coração foi pouco. O certo seria lhe deixar fortuna para se acolher na sua velhice. A D. Lurdes ofereceu espólio para este Espaço Museológico e para o do Alvorge, terra que também o saudoso Dr. Travassos amava muito, curiosamente, eu também. Era um grande amante da Filatelia. Angariou muitos selos das ex. colónias de doentes e amigos. A minha irmã entusiasmou-o a expor a sua coleção por duas vezes no salão nobre da câmara de Ansião.A D. Lurdes Santos, pelos anos que lhe dedicou de grande afetividade, que hoje é raro haver pessoas haver assim tão abençoadas, ainda fez a entrega de muito espólio ao Espaço Museológico do Consultório de Memória, e também para o Alvorge.
                       
Arte urbana 
 na fachada do Consultório da Memória

Nascido em Nogueira, Arganil, a 1 de fevereiro de 1922, no seu primeiro centenário foi desterrada estatuária, pelo município de Ansião, em espaço nobre da vila. Em terra de canteiros e de lavrantes  - foi desterrada  com honra o primeiro busto em bronze, a um cidadão homenageado a título póstumo ao enxergar em terra de fariseus o real valor do humanismo em cidadania. Viva o povo que saiu à rua para aplaudir! 


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