Em 2008, com a herança inesperada de uma propriedade vinícola, vi-me confrontada com um dilema: apostar na manutenção ou no seu abandono.Decidi teimar na aposta da sua preservação, surgindo a necessidade de alguma aprendizagem e aquisição de conhecimentos específicos sobre esta temática, da vinha e do vinho.Através de roteiros turísticos disponíveis on-line, seleccionei uma Quinta no Douro que oferece aos seus visitantes, na época das vindimas, a possibilidade de participar nesses trabalhos, para auto valorização, aprendizagem ou somente lazer.A escolha foi aleatória, tal o número de ofertas.Fácil, foi agendar uma data e ir sem ninguém se aperceber...menti...tinha de ser!
Na data estipulada, depois de acalmada a ânsia com o aproximar da hora, cheguei à Quinta do Crasto no Douro vinhateiro.À minha espera, o capataz e o enólogo deram-me as boas-vindas.Todos sabiam da minha chegada e dos motivos da minha visita, esclarecer e aprender vários conceitos da vinha e do vinho.A vontade de começar a fotografar era imensa: a casa grande, os barracões, onde se guardam as alfaias, a serem invadidos pelas mulheres, que se apressavam a ir buscar as tesouras de poda, e a azáfama dos homens a carregar os tractores de cestos.O capataz pegou, então, na maleta de primeiros socorros, embalagens de luvas e garrafas de água.Estava tão entusiasmada com o rodopio dos tarefeiros.Todos pareciam saber as suas funções e, já instalados, lá partimos rumo à vinha do Marco do Grilo.A minha vista alcançava em redor um percurso sinuoso de estradas estreitas, rodeadas por um imenso mar de vinhedos aos carreirinhos, xisto e mais xisto a tropeçar nos pés. Ao longe o rio sereno numa de fazer caretas com as sombras dos salgueiros por entre os raios de luz…
Interrompi os cliques da máquina fotográfica para ouvir as explicações sobre a utilização de luvas: "a casta das uvas pretas é muito tintureira e as mãos, se não estiverem protegidas, ficam encardidas".Por falta de hábito no manuseamento da tesoura de poda, ou nervosismo, cortei um dedo, de imediato o capataz apressou-se a ir buscar a maleta e a socorrer-me no ferimento.Fiz uma pausa na vindima e voltei a atenção para a minha máquina digital, que já contava com umas largas dezenas de fotos.Neste momento estava a ouvir à minha volta algumas pessoas que falavam acerca da maturação das uvas, prevendo uma colheita superior à do ano anterior.O tempo tinha corrido de feição,o míldio fez tréguas,também a última chuvinha diziam, acabou por lavar, engordar os cachos que ganharam mais doce, alimentando expressões com sotaque ...
"Olhe, as abelhas já andam à roda delas", auspiciando um ano de bom grau, quiçá de um vinho "vintage".O vaivém dos homens com os cestos cheios de uvas nos carreirinhos e os de regresso já descarregados no tanque inox do tractor, estratégica medida cautelar de higiene sem perdas de uma pinga de mosto, saíam em direcção ao lagar, atulhados de uvas, reluzentes ao sol.O almoço foi servido no arraial em plena vindima, trazido por mulheres com cabazes de verga branca.Serviram de entrada bola de Lamego, o prato rancho à moda de Viseu, fruta melão,e doces as famosas cavacas grandes que davam para encher de vinho da adega, por sinal esplêndido.Com o estômago composto com o apetitoso repasto, ouviam-se anedotas, e alguém insinuou: "Então e as fotos?"
Aproveitei o ensejo do mote e registei mais uns momentos descontraídos de todo aquele alegre rancho de gente.À tardinha regressámos à Quinta em direcção ao lagar.O rancho, só de homens que tinham vindo à frente, estava já no preparativo do ritual da lavagem dos pés para entrar no grande tanque.Dava-se início à pisa das uvas!
Abraçados a cantarolar "Era o vinho, meu bem, era o vinho, era o vinho que eu mais adorava!" a fazer lembrar os rituais alentejanos a cambalear como ondas.As mulheres tratavam da lavagem dos cestos e da limpeza das tesouras, arrumando tudo o que tinha ido para a safra.A noite já ia longa, o corpo não perdoa e o cansaço era muito.Todo o pessoal irradiava uma simpatia sem igual, franca e sempre pronta a esclarecer dúvidas.Aprendi novos conceitos sobre um tema quase desconhecido, que me tornaram apta para seguir em frente com o meu projecto.A Quinta tem várias vinhas: Lameira, Cadela, Cantinhos e Salgueiro.Cada safra com a sua casta destina-se apenas a um lagar (tanque).No lagar havia cinco, só dois estavam ainda vazios.Depois da pisa, o mosto foi tratado com produtos químicos (a quantidade regula-se pelos cestos,compra-se nos Grémios e farmácias), o mosto ferve entre 4 a 5 dias durante estes o ritual diário, calcar duas vezes o mosto que sobe no tanque com alfaias de madeira a lembrar os rodos das salinas.Noutro tanque, registei essa tarefa, executada por várias pessoas à volta do mesmo, ficando tapado com plástico como medida de protecção.No dia seguinte, assisti noutro sector do lagar, ao vasilhame do vinho em pipas de carvalho francês, devidamente preparadas, sendo estas tapadas com um marmelo ou uma maçã, para evitar os mosquitos, o mosto continua a ferver e deita fora, quando deixam de ferver, finalmente são tapados pela rolha de cortiça.A minha aventura tinha terminado.
Numa conversa, de hora e meia, com o dono da Quinta, esclareci as últimas dúvidas sobre cava da vinha e sua fertilização.Por fim, ele fez questão de se despedir pessoalmente de mim e dos restantes colaboradores de fim-de-semana que abraçaram uma aventura diferente, na lavoira!
Quanto ao vinho, com muita pena minha, o resultado final só será provado na Páscoa, pois no Carnaval ainda devia ferver.Será que irá manter a graduação da colheita anterior, 15º?
Vamos esperar para ver e, com sorte, ainda poderei fazer uma pequena visita e prová-lo directamente das pipas da Quinta da D. Antónia.
Apeteceu-me regalar de espanto e surpresa a minha família.Para tal os presenteei na casa rural com um almoço regrado.Fiz cartazes de boas vindas alusivos que tinham ao lado dos lugares na mesa com a lenga-lenga, à falta de melhor improviso na arte de poetar:
Surpresa, surpresa! O que vem lá?
Será coisa boa ou coisa má?
Boa será!
Humm, cheira a cozido…
E a sobremesa o que será?
Querem uma pista?
Podem ser tintas,brancas ou morangueiras
Colhem-se e esmagam-se de mãos nas ancas,
E o aroma? Ah, cheira tão bem!
Mal podia esperar para mostrar as fotos de todos os registos feitos durante a minha aventura.Será que ia ganhar o desafio?
Depois de um bom cozido à portuguesa e já bem instalados no sofá e no caixote corrido, dei início ao documentário.Fotografia a fotografia fui revelando as experiências por que tinha passado,original, divertida e de mais valia como conhecimento.Tal o espanto da família era geral, estupefactos com a aventura que eu tinha vivido.
Perguntavam incessantemente "Foste tu? Mas és tu, não és?"
O desfecho desta minha aventura... aposta foi ganha!
Não poderia desejar nada mais do que os sorrisos e as palavras expressas naquela tarde por todos, um a um.Valeu a pena o desafio.Agora, só é preciso pôr mãos à obra naquela que será a nossa Quintinha da Mó.Bem, conhecimento já adquiri, motivação também.
Já iniciámos a poda e a fertilização do terreno.Agora é só esperar por Setembro próximo e que o ano tenha chuva e sol quanto baste.De resto, bem… já os antigos diziam "o hábito faz o monge", nesse pressupsoto o desejo para mim!
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