Para abordar esta temática decidi seleccionei um caso polémico de HIV/sida mediatizado pelos mass media.
Em causa está A., cozinheiro do quadro de um hotel de Lisboa, do Grupo Sana Hotels, durante sete anos.
Em 2002 adoeceu com tuberculose e esteve um ano de baixa.
Quando regressou ao trabalho foi mandado ao médico do hotel para reavaliação do seu estado de saúde.
O médico do trabalho do hotel pediu ao seu médico assistente do Serviço Nacional de Saúde dados sobre a sua situação clínica.
DISCRIMINAÇÃO DE UM TRABALHADOR PORTADOR DE HIV/ SIDA:
REFLEXÃO À LUZ DO DIREITO PORTUGUÊS
Com a pretensão de se analisar a resposta do direito português a uma situação real de violação do dever de sigilo médico, e o subsequente despedimento de um trabalhador do restaurante de um Hotel portador de HIV.
Serão tomados em consideração também os instrumentos normativos europeus e internacionais mais relevantes nesta matéria.
Descrição do caso e enquadramento jurídico dos factos apresentados:
A direcção de determinado Hotel de Lisboa tomou conhecimento através do médico de serviço à empresa, da situação de portador de HIV de um dos seus empregados.
Subsequentemente, promoveu o despedimento desse trabalhador, com o fundamento de “não se encontrar em condições de manipular alimentos” e “não terem outro lugar para o colocar”.
Assim, procurando a identificação dos problemas jurídicos podemos afirmar:
Numa consulta de medicina do trabalho o médico tomou conhecimento da seropositividade do trabalhador.
Posteriormente terá revelado esta informação à direcção do Hotel.
Estes factos poderão consubstanciar um caso de violação do sigilo profissional.
Mais tarde, a direcção do Hotel moveu um processo de despedimento do trabalhador com fundamento na sua seropositividade, o que poderá configurar um despedimento sem justa causa e a prática de um acto de discriminação.
A violação do dever de sigilo profissional.
Os factos apresentados levam-nos a presumir que o médico teve conhecimento do esta-do de seropositividade do trabalhador durante a consulta e que terá de seguida revelado esses factos à direcção do Hotel.
- O direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar está consagrado em diversos documentos internacionais e europeus.
O Direito Penal, o ramo jurídico que visa proteger os bens jurídicos fundamentais da vida em comunidade face às mais fortes e intoleráveis agressões, protege o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
“O teste positivo da SIDA faculta ao médico o conhecimento de um facto cuja pertinência à área de confidencialidade e reserva – mesmo à área irredutível e última do foro intimo.
No plano disciplinar, os artigos 67.º e 68.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos regulam a matéria relativa ao segredo médico.
A protecção da confidencialidade médica está na não revelação de segredos conhecidos no exercício da profissão, em ordem a proteger a esfera de segredo e de privacidade do paciente.
Neste sentido, o artigo 68.º do Código Deontológico procura incluir no âmbito de protecção do segredo profissional factos a que o médico tenha acesso privilegiado pela conversa e observação do doente. Assim sendo, qualquer interessado poderia ‘participar’ junto da Ordem dos Médicos estes factos, instaurando-se um processo disciplinar.
O Código de Trabalho, partindo de uma concepção personalista, dedica várias normas aos direitos de personalidade e à igualdade e não discriminação.
a) Direitos de personalidade
No que respeita aos direitos de personalidade do trabalhador, o Código estabelece normas relativas à realização de testes de saúde (artigo 19.º - Testes e exames médicos). Esta norma já foi objecto de critica por parte da doutrina, já que este tipo de profissões de grande risco (para o próprio e para terceiros) estão sujeitas ao controle de autoridades administrativas, pelo que deveriam ser estas e não o empregador a acautelar estes interesses.
Este artigo pode constituir uma porta aberta para testes abusivos e discriminações no acesso e no âmbito da relação laboral.
Neste sentido, a Comissão Nacional de Protecção de Dados afirmou que “não se vislumbra que haja razões suficientes para fazer estes exames fora do âmbito das competências dos serviços de medicina do trabalho.
O portador de HIV, na qualidade de candidato a emprego, não está obrigado nem a fornecer informação que lhe diga respeito nem a ser submetido a qualquer teste.
Este tipo de informação não pode ser utilizada para impedir alguém de obter um emprego, nem para fundamentar o seu despedimento.
A CNPD visa assim respeitar o Código de Conduta da Organização Internacional do Trabalho segundo o qual: “Uma infecção por HIV não pode ser causa de despedimento.
Pessoas com doenças relacionadas com esta infecção devem poder trabalhar enquanto se encontram aptas do ponto de vista clínico.”
Todos estes elementos reunidos conduzem-nos à conclusão de que só em casos excepcionais seria legítimo impor um teste de HIV a um candidato ao emprego ou a um trabalhador, e que isso, em caso algum, justificaria a violação do segredo profissional.
O HIV/sida como Doença Crónica
Destaca-se o artigo 22.º do Código do Trabalho (Direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho) que determina: Nenhum trabalhador ou candidato a emprego pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.
” A protecção dos trabalhadores seropositivos poderá ser alcançada pela interpretação do conceito de “doença crónica”.
No âmbito da luta contra a discriminação na União Europeia merece referência também a Directiva 2000/43/CE, que estabelece o princípio da igualdade de tratamento das pessoas independentemente da sua origem racial ou étnica.
Assim, no caso seleccionado o Tribunal da Relação constatou que o médico do Serviço Nacional de Saúde envia a informação de trabalho de que este tinha sofrido de tuberculose, que estava completamente curado, e que era portador de HIV positivo. Acrescentava ainda que o cozinheiro podia “retomar a sua actividade laboral em pleno” e que “não representa qualquer perigo para os colegas”.
A empresa do hotel sempre afirmou que não tinha sido informada do seu estado de saúde mas o funcionário foi impedido de voltar ao seu trabalho na cozinha e esteve sem nada para fazer durante meses.
Em Março de 2004, uma carta dizia que o médico do trabalho o tinha dado como “inapto definitivamente para a profissão de cozinheiro, pelo que não pode manipular alimentos”.
O hotel fez assim caducar o contrato por “impossibilidade superveniente, definitiva e absoluta de A. prestar o seu trabalho”.
O Tribunal da Relação de Lisboa considerou justificado e legítimo o despedimento do cozinheiro infectado com HIV que trabalhava na cozinha do hotel, confirmando decisão semelhante já tomada pelo Tribunal de Trabalho de Lisboa.
Os três juízes desembarga-dores que assinam o acórdão tinham ao seu dispor dois pareceres científicos, um deles pedido pela Coordenação Nacional para a Infecção HIV/sida ao Centro de Direito Bio-médico, que desmentem alegados riscos de transmissão de um cozinheiro. Mas ignoraram-nos na sua decisão de Maio deste ano.
O advogado do trabalhador defendeu no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que “não existe conhecimento de qualquer caso de transmissão do vírus HIV para colegas de trabalho ou para alimentos”.
Mais, acrescentou que o acórdão Do Tribunal da Relação assentou “em bases cientificamente incorrectas, sem qualquer apoio nos conhecimentos médicos existentes”.
O Ministério Público do Supremo Tribunal entendeu que “o despedimento foi ilícito” e que a decisão da Relação devia ser revista pelo Supremo Tribunal de Justiça, precisa-mente porque a empresa não conseguiu provar a sua indisponibilidade para recolocar A. noutro tipo de funções.
O Ministério Público entende que não bastava ao hotel dizer que não tinha outro posto, mas sim prová-lo com “factos concretos”, como a apresentação “da dimensão do quadro de pessoal, o conjunto das categorias profissionais que o integram, o seu preenchimento integral e ainda o mapa do pessoal”.
Como forma de protesto contra o despedimento do cozinheiro infectado com o vírus da Sida, a Associação Médicos Pela Escolha promoveu um «almoço contra a discriminação» cozinhado exclusivamente por seropositivos.
Henrique Barros, coordenador nacional para a infecção HIV/sida, lembrou as únicas três vias de contacto conhecidas:
"O HIV transmite-se através de relações sexuais sem preservativo, por via endovenosa e da grávida para o bebé".
Ao todo, cerca de 40 pessoas compareceram no Bairro Alto, no restaurante "Agito", para um almoço "contra a discriminação".
Uma iniciativa organizada pela Associação Médicos pela Escolha, para contestar as sucessivas decisões judiciais que deram razão ao hotel do Grupo Sana, no caso do cozinheiro despedido por ser seropositivo.
Para Vasco Freire, o acórdão do tribunal "teve como consequência aumentar a discriminação" e afastar os trabalhadores dos médicos do trabalho.
No almoço estiveram também presentes Isabel do Carmo, Maria José Campos, Ana Campos, Jorge Portugal, Rosário Horta, Miguel Vale de Almeida e João Goulão.
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