A foto mostra a minha querida
mãe à porta do correio velho, onde começou a trabalhar nos últimos meses da
minha gestação. No dia 4 de maio de 1957, após um turno da meia-noite, de
regresso a casa com o meu pai, à ladeira do hospital, foi acometida com as dores
do meu parto. Passados 8 dias de licença voltou ao trabalho, deixando-me aos
cuidados da minha avó Piedade e criadagem da sua padaria. A Ti Angelina de
Albarrol, de belos olhos azuis, acumulava a venda do pão, de cesta à cabeça,
com o papel de ama, na incumbência de me levar à aleitação, ao correio, pelo
Beco do Ensaio. Ainda menina, de tenra idade e inocente, fiz o turno da
meia-noite, na companhia da minha mãe, deixando o conforto da lareira, da
televisão e, do aconchego da pele de bode, de pêlo comprido, tingida de laranja,
trazida do Alentejo pelo meu avô Zé Lucas.
Finou-se a vida laboral árdua,
com a chegada da informatização telefónica a Ansião, em finais de 1972, com
telefone 24 horas, em vez das 8 à meia-noite.
A nossa tradição na
ceia de consoada não fugia ao bacalhau cozido com couve asa de cântaro, no
horário igual a todos os dias e ainda, em repetido repasto semanal alternado à
Gomes de Sá. Agora a razão de se conferir ao fiel amigo, que aprecio, a pompa e
circunstância de ceia da consoada, quando o Livro Mulher da Reader’s Digest pelo mundo ditava outras
iguarias, ninguém me sabia dizer …Bem sei que os tempos eram outros.Nas mercearias só via as pessoas a comprar bacalhau do miúdo, do corrente mais caro, só poucos lhe chegavam, comia-se muita raia seca, recordo o ritual de o ver cortado ao balcão na faca de guilhotina . O rabo também se levava para fazer um bom arroz acompanhado com pataniscas ou bolinhos com salsa, cebola e pimenta. A agricultura é uma paixão, sempre gostei da horta: cultivar e colher. A couve deve escolher-se uma com o melhor olho, porque a geada nesta altura do ano não perdoa, mas, amacia os talos que os deixa tenros para a consoada; regados com bom azeite novo até limpar o prato, com o bom pão desse
tempo de Ansião. A minha avó materna Maria da Luz, da Mouta Redonda chegava de
camioneta, vestida de negro com cabanejo de laranjas nas mãos. Em nossa casa vivia atarefada
com a fritura dos belozes de abóbora-menina, escorridos em papel pardo que
salpicava a canela e açúcar amarelo. Escrupulosa, escolhia os mais bonitos para
oferecer na fogaça ao Menino Jesus no dia de Natal.
A receita dos Belozes
Coze-se à roda de um quilo e meio com sal e um pau de canela, depois de fria deixa-se a escorrer num pano uma noite, prensa-se com as mãos até tirar toda a água. No alguidar mistura-se com o fermento de padeiro (15 a 20 gr) dissolvido no sumo de uma boa laranja ou duas, junta-se 3 ovos pequenos ou dois grandes, um de cada vez mexendo sempre, um cálice de aguardente , 100 gr de açúcar amarelo e 250 gr de farinha, menos, ou mais, consoante a textura da massa que deve ficar mole e de consistência rendada depois de levedada 2 horas, em local abrigado. Fritam-se colheradas de massa, ensopam-se do excesso de azeite da fritura em papel pardo e cobrem-se numa mistura de açúcar amarelo e canela. Prontas a saborear.
Acabada a ceia da consoada, a minha mãe
apressava-me para encher a lata de brasas e não esquecer as pratas dos maços de
cigarros do meu pai para aguentar a braseira no correio. Mal chegadas cumpria o ritual de fechar
a janela com a tranca grossa de madeira nas saliências de pedra. Fechadas, na
roda da braseira, sem calças, ainda não se usavam, o calor deixava as pernas
manchadas de vermelho – as chamadas “chouriças”…Por entre silêncios
interrompidos pela manivela do PBX ou do manuseamento das cavilhas para atender
os assinantes, ouvia estórias da minha mãe, vendo as brasas definhar ao
jus de castelo de cartas, em total derrocada… Mal amainava o
movimento telefónico, o gozo da nossa consoada com o taleigo aviado de casa; mão
cheia de passas pingo mel, belozes, papos-secos com maminhas, chouriça ou lascas
de presunto, miniatura de vinho do Porto e nozes; que partia com o peso da
balança. A minha mãe usava o espeto de inox dos verbetes das chamadas locais …Bem
“arresuadas” (termo calão da Mouta Redonda para barriga cheia) balbuciava-me
oh Belita já estás a chamar o Manel da Silva;
imagem alegórica a um criado dos meus avós da Mouta Redonda “ tinha o hábito de passar pelas brasas em
vez de tomar conta do leitão deixando queimar as orelhas…“ Havia de ficar
associado à chegada do sono na criancice da minha mãe, continuado nas suas filhas,
neta e bisnetos…Num virar de olhos já tinha montado a cama no chão, paredes
meias com o cofre vermelho e frio, em colchão improvisado com a mala das
encomendas, abafada nos velhos cobertores garridos dos saudosos tecelões do Avelar, trazido da herança da minha avó Maria da Luz. Pior, eram os odores fortes das malas do correio, da corticite da cabine
telefónica, do soalho velho esfregado, da braseira ou do arquivo…Música
melodiosa, a embalo do meu doce sono ao som das duas cordas do relógio da Reguladora,
até acordar sobressaltada para voltarmos para casa, ficando em espera ao rebate
da porta, até o relógio da igreja dar as badaladas da meia-noite. De braço dado
a dividir o frio e o medo, em passo apressado, sem se vislumbrar vivalma em ruas
vazias e pouco iluminadas. Ao Ribeiro da Vide a penumbra dos plátanos onde por
vezes havia acampamentos ciganos ou no barracão da Cerca da Misericórdia. Apaziguava
a fé na reza; eu vou com Jesus, Jesus vai comigo, quem vai com Jesus não tem
morte nem perigo.
Mais uma vez o
progresso acabou com o bucolismo da braseira ao ser substituída pelo grande
aquecedor de barras a óleo…Em 1969, enviaram presentes para os filhos dos
funcionários, sem a destrinça de serem para "menino ou menina" … A grande bola de plástico em
gomos coloridos e uma girafa amarela de manchas castanhas e corninhos. Em 1969, a minha mãe encomendou a prestações o Cabaz de Natal que chegou numa grande camioneta à nossa porta. Grande caixote deixado na sala de visitas logo aberto e logo fechado. Quando os nossos pais voltaram do trabalho ficaram estupefactos com o nosso entusiasmo pela enorme surpresa e, felizes autorizam a abertura. sem sonhar que já sabíamos do recheio...fingidas com as grandes bolas azuis para enfeitar o pinheiro bravo cortado nas traseiras do hospital da Misericórdia, onde a semente caiu farta, e dos vários frutos secos; caju que não conhecíamos e tâmaras, passas, licores, aguardentes finas, vinho do Porto, sumos e néctares - a Compal era uma empresa recente, com a marca V5, chocolates, bacalhau, latas de fruta , goiabada, prendas para as crianças e,...Não faltava nunca o bolo rei encomendado telefonicamente nas boas pastelarias de Coimbra; Briosa, Café Império ou Internacional , na altura nenhuma de nós apreciava a iguaria. Escarafunchávamos o bolo todo para lhe tirar as frutas que nesse tempo não apreciávamos, só para encontrar a prenda... Já o meu pai encomendava às Caves da Mealhada ou da Anadia uma maleta em aparas de pinho pintadas a letras vermelhas, cheia de bebidas espirituosas Em prontidão ao encontro junto da farmácia, na praça do Município da camioneta do Pereira Marques, para receber as encomendas.
Graças ao início da minha
vida interligada ao correio velho correlacionei num dos livros de César
Nogueira, que a residência do pároco de Ansião, após a República foi nacionalizada.
A que juntei a informação do Sr. Artur Duque, sobre o Ensaio, construído em
parte do celeiro com frontaria para a Rua de Trás, hoje Almirante Gago Coutinho. Desde sempre tive dúvidas sobre o Ensaio ter janelas para nascente para quintal do correio e ainda haver 3 portas
entaipadas para o mesmo Beco. Justificadas com o conhecimento do prédio ter sido da paróquia; casa do padre e o celeiro.
O padre acumulava o papel de procurador do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e no celeiro eram guardados os foros das quintas emprazadas para entrega em Coimbra. Tudo acabou com a extinção das Ordens Religiosas em 1834. Por altura da República estava inactivo, sendo nacionalizada, por vontade do povo cansado e revoltado à riqueza e poder da igreja, que não tinha olhamento às condições miseráveis em que vivia o povo .
Ensaio, antes da requalificação seguido do Beco do Ensaio, sem ainda estar atestado na toponímia
A televisão incitava a
escrever ao Pai nas férias de Natal. Durante anos escrevi a minha carta onde pedia o meu presente, a minha mãe dava-me sempre o selo e logo a colocava na caixa vermelha ao lado da porta de entrada do Correio, despedindo-me com um beijo. Tantas esperanças na carta colorida com lápis de cor, em desenhos com arco-íris, balões e flores. Acredito que o Pai Natal não teria assistentes ao tempo, a correspondência deveria ser muita, porque nunca recebi resposta, muito menos presente. Com o passar dos anos, desiludida, abandonei a causa. Recordo de fazer com a minha irmã o presépio com musgo e fetos em cima do móvel da cristaleira na sala. Os bonecos de barro em cores fortes eram comprados na feira de agosto numa tenda encostada aos Paços do Concelho. A árvore de Natal foi colhida no tardoz do hospital, onde a semente de pinheiro caiu farta durante anos .Não perdia o Natal dos
hospitais, que ainda se mantém. Como da reportagem no telejornal ao contingente
militar no Ultramar. Todos em fila, a preto e branco, ditavam ao microfone
votos de Boas Festas para as suas famílias; um proferiu propriedades em vez de
prosperidades … O advogado, Dr. José Luís Antunes enviou saudações para a
família e namorada que veio a ser esposa, a saudosa “Celinha do Vinte e nove”.
Vivência de Natais diferentes
- mas, de âmago, porém de coração inquieto, pela ânsia de ter nas mãos a prenda
do Pai Natal…Pela manhãzinha, ao acordar na casa gélida, saltava da cama em corrida pelo corredor e só parava junto ao pial da chaminé para ter na mão a prendinha deixada no sapatinho que dormia ao lado da cama de cinzas ainda quente... Deleite maior sentir que o Pai Natal nunca se esqueceu de mim nem da minha irmã. Durante anos, acreditámos que descia pela chaminé com o saco das prendas às costas, por isso era limpa com o vassoiro de urze -o nosso pai, amante de grandes fogueiras atiçava o lume com ramos de oliveira, em labareda farta que a sujava de fuligem…Anos mais tarde surpreendi a minha mãe a deixar as prendas nos sapatinhos
no pial da lareira... Desmoronou-se o meu sonho do Pai Natal...
Em dia de Natal, aperaltada para a missa, levando
nas mãos a cestinha de aro alto forrada a naperon de papel recortado a imitar
renda, como a avó fazia em jornal para a cantareira. Na igreja, em lugar sentado a olhar o presépio de figuras grandes, montes e a gruta do Menino Jesus. No fim da missa, em fila indiana, gostava de o beijar como agradecimento por não se ter esquecido de me deixar uma prenda no meu sapatinho. As fogaças eram leiloadas no final da missa, um ano a minha foi arrematada pelas filhas bonitas do Sr. Coutinho de Aquém da Ponte da Cal… Moçoilas e mulheres airosas me devolveram a cestinha com sorrisos …
A globalização chegou
com o 25 de abril. Assistiu-se a uma mudança brutal no consumismo com
demasiadas prendas fechadas em papéis coloridos e laços que se desfazem em
segundos a entupir os caixotes de lixo…um caus para o ambiente e sua sustentabilidade!
Deixo os leitores ao embalo de versos da autoria da minha
mãe:
Natal é a alma de um
povo
Que festeja ano após
ano, sem parar
O nascimento muito
antigo, mas sempre novo
De Jesus, que nasceu
para nos salvar!