Corria o mês das flores e de Maria…Cinco de maio o dia do meu nascimento!
Ao som inconfundível do relógio da Reguladora no toque das doze badaladas com a mão na aldraba da porta do Correio velho dava sinal de chegada o meu pai -, corria o mês de maio, dia quatro do ano de 57, ano de efemérides: lançamento para o espaço do primeiro satélite russo -, Sputnik levava a bordo o primeiro ser humano a cadela Laica; da visita da rainha Isabel II de Inglaterra a Lisboa, entrada com fausto e circunstância na passadeira vermelha pelo lindo cais das colunas no Terreiro do Paço e, no final do ano nascia a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Ansião, mesmo antes do Natal…nasci no dia seguinte no Instituto Maternal de Coimbra.
Casório dos meus pais…Urgente tomar a atitude certa-, enfrentar as famílias, dar a notícia da gravidez . Desgosto sentiu o meu pai ao desistir do curso de engenharia na obrigação de arranjar um emprego fez que procurasse trabalho na Câmara, se não me atraiçoa a memória o único funcionário administrativo no staff camarário com mais estudos na altura, a maioria dos colegas com o exame da 3ª e 4ª classe. As famílias não se gostavam, a minha avó materna Maria da Luz com pressa alcunhou o meu pai de "homem iligante pernas aranhão de mina" pela altura agigantada.
Arcas do enxoval sempre presentes no meu imaginário, tantas vezes vi a minha mãe as fazer e desfazer, na vontade de sair de casa, não voltar mais, cansada de violência doméstica, resmungava baixinho -, sair ou ficar -, medos atazanavam-lhe a mente, sabia que o seu lugar nem arrefecia, não por vontade direta do meu pai antes, fartança de atrevida mulher que sem escrúpulos o ocuparia no dia seguinte. Valores maiores sempre presentes em momentos de crise clamavam mais alto: o amor pelas suas filhas; bom senso; ponderação e bens que abonava um dia serem sua pertença. A arca do noivo de madeira de tampo oval e grande fechadura sobreviveu a anos de maus tratos -, recordação que quis perpetuar-, restaurada pelo Ti Júlio Silva do Carvalhal, anos a trabalhar por Lisboa tinha mãozinhas para a arte de carpintaria,os pezinhos de suporte que lhe fez conferem maior sobriedade, a da noiva em jeito de baú com tiras de couro, lindo acabou por morrer de velho.
As raparigas solteiras do Bairro, Elisa, Fátima, Júlia, Tina e,… deu-lhes na ideia de ornar a portita da casa dos noivos com um arco engalanado de folhas de laranjeira. Príncipes no dia do seu casamento - o noivo estreou um lindo fato preto com risca branca e lenço branco na lapela, a noiva "por levar a barriga à boca" usou tailleur saia e casaco verde água a contrastar com os seus olhos da mesma cor, tecido comprado nos armazéns Grandela em Lisboa, confecionado no Avelar na Rua do Castelo na casa rosa que ostenta vaidosa na frontaria pedra lavrada com a inscrição de 1914, sobre os cabelos louros de oiro usou em feição de grinalda mantilha preta de renda com laivos dourados, comprada nos armazéns do Chiado, pochete, e sapatos de veludo preto - compras na capital após o regresso da Madeira.
O padre Melo
Os nubentos casaram a dez de fevereiro de 57 na igreja de Pousaflores -, o padre Melo vindo do Luso aqui enraizado vestido de paramento dominical dourado, enviesado, subido pelo altar da barriga, e óculos redondos enfiados na ponta do nariz. Convidados acomodados numa carreira contratada ao Pereira Marques com honras de fotógrafo -, Jaime Paz. Fotos grandes a preto e branco, em todas, o padre Melo, os noivos e os convidados: Armando (Girafa), Armando Cardoso, Artur Paz, Fernando Silva, Germano e Adelino Pires, Armando Costa, Diamantino Monteiro e filhos: Necas e Tininha, Álvaro Domingues, José Monteiro, tio António e Júlia do Escampado S. Miguel, tia Maria e Manel do Bairro de Santo António e filhos: Chico, São, Tina, Júlia, bisavô Elias Cruz, tio António Paz, Titi e Isabelinha, tia Amélia e os filhos Raul e Fernando de Além da Ponte, tia Carma, António Russo e Elsa e, …
Boda servida no calor da padaria: canja, iguaria da avó Piedade e, verde, miúdos de porco guisados com batatas e sangue feitos pelo bisavô Elias -, um mestre a dar cartas em bodas de casamento. O tio Chico -, padeiro de serviço fez uso da mesma pá que na madrugada tirou os pães de coroa cobertos de folhas crespas para não se queimarem, agora com maior cuidado tirava os tachos de chanfana e, os punha na bancada onde mulheres os serviam pelas mesas, vinho a jorros em infusas a transbordar mancharam as toalhas brancas em sinal de festa.
Dia do meu batizado…
Estreei a casa nova de caras para o adro do Santo António a oito de Agosto de 57 fotografias tiradas com o "Kodak" emprestado pelo retratista Jaime Paz.
Foto no parapeito da janela da casa ainda não acabada, na varanda da frente
As primas do meu pai; a Tina e a Júlia, moçoilas casadoiras, puseram uma bacia em cima do parapeito de pedra da janela que viria a ser o meu quarto numa de fingir dar-me banho, vaidosas de saias rodadas, e sorriso maroto no varandim fizeram-se para a fotografia. Outras fotos junto ao pé secular da oliveira no quintal, numa delas a criada Helena com 14 anos, vestida a rigor de avental branco bordado na frente comigo ao colo, ladeada pelo meu avô "Zé do Bairro" - colete e corrente de ouro a abafar a barriga, a minha avó Piedade, o padre doutor António Freire de Lisboinha de batina que celebrou o batismo primo da minha mãe, mais tarde radicado na Sé de Braga, e o Ti Zé André do Ribeiro da Vide amigo, vizinho -, homem que financiou a título de empréstimo quinhentos escudos para custear a maternidade.Noutras fotos os meus pais e o meu tio paterno Chico.
No adro da capela fotos só com a minha mãe comigo ao colo, saia a três quartos de pregas largas a evidenciar a finura silhueta, blusa branca e cabelos loiros presos com travessa a realçar o rosto.
Logo houve um pequeno acidente -, a casa de banho ainda não estava pronta, faltava o chão, uma cobra que vinha pela janela ao cheiro do meu leite, dizia o meu pai, foi morta por ele com uma enxada…